segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Ferreira da Silva: leitura urbana

Ferreira da Silva é um dos nomes maiores das artes plásticas do Portugal contemporâneo, com uma obra que abarca o desenho e pintura, a gravura e a escultura, o vitral, a azulejaria e a cerâmica. A sua vastíssima obra cerâmica (faiança, grés, porcelana), que se distribui por todo o país e abarca diversas modalidades de trabalho – desde a pintura ao design, desde a modelação de peças artísticas à produção de cerâmica utilitária – tem uma particular concentração nas Caldas da Rainha e região envolvente, onde começou a trabalhar aos 16 anos. Nasceu no Porto em 1928 e fez estudos de desenho e pintura em Coimbra, antes de iniciar um percurso profissional na indústria cerâmica que passou pelo Bombarral, Alcobaça, Viana do Castelo, Ermesinde, Benedita, Caldas da Rainha, Porto, com regresso às Caldas da Rainha na década de 1980.
Na cidade das Caldas da Rainha, a sua obra cerâmica pode ser vista no Museu da Cerâmica, na colecção Municipal Ferreira da Silva[1], no Cencal (Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica), em diversas colecções particulares e sobretudo em vários edifícios e locais de acesso público. Um Centro de Documentação Ferreira da Silva foi constituído recentemente entre a Câmara Municipal e a Associação Património Histórico. Em resultado dos trabalhos deste Centro, organizou-se um inventário da obra em espaço público de Ferreira da Silva, de que o presente catálogo é tributário.
Ferreira da Silva em obra. Obelisco "Leonor"
Fotografia de João B. Serra, 2001
A estrita e directa articulação entre intervenção artística em espaço urbano e encomenda orientada para o espaço público explica que a parte mais significativa deste tipo de trabalhos se centre nos últimos trinta anos da vida de Ferreira da Silva. É sobretudo após a sua segunda fixação nas Caldas[2] que se reúnem as condições de produção e de procura que viabilizam um crescente volume de obra pública deste autor. As condições de produção encontrou-as no Cencal (criado formalmente em 1981, dotado de instalações próprias em 1985) e na Molde, uma empresa de louça e azulejo fundada em 1988[3]. A procura veio inicialmente de um ou outro serviço do Estado ou empresa pública (o Palácio da Ajuda, o Instituto de Oncologia de Coimbra, a Brisa). O próprio Cencal[4], o Centro Hospitalar das Caldas da Rainha[5] e a Câmara Municipal das Caldas da Rainha[6] foram as entidades que mais e mais volumosas intervenções suscitaram a Ferreira da Silva. A par delas, pode ser colocada a empreitada decorativa que lhe foi atribuída pela administração da Quinta do Pinheiro, Hotel Rural, em Valado de Frades (da empresa A. Varela & Filhas - Agricultura e Turismo Lda.), no final da década de 1990, a qual se prolongou até 2007. Haverá ainda que referir a instalação efémera que realizou a convite do comissário da edição de 2002 do festival “Monsaraz Museu Aberto”, iniciativa da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz.
Ferreira da Silva em obra. Obelisco "Leonor".
Fotografia de Margarida Araújo. 2002
A obra pública cerâmica caldense de Ferreira da Silva é constituída por painéis azulejares, por instalações compósitas onde a cerâmica se cruza com materiais não cerâmicos, como o ferro, o vidro e a pedra. Combina fragmentos cerâmicos resultantes da actividade de produção fabril, cerâmica azulejar de forte coloração e frequente alusão a temas da mitologia clássica, da poesia e da história da ciência. O feminino é presença frequente, sendo especialmente assinalada a figura da rainha Leonor, fundadora das Caldas moderna. Algumas instalações são de escala considerável e foram realizadas por diferentes fases, implicando deslocações ou sobreposições de perspectiva criativa.
A obra de Ferreira da Silva introduziu alterações substantivas na cerâmica portuguesa. É uma obra de alta exigência técnica, com a qual pôde afrontar a escala própria das intervenções em espaço público. É uma obra que, sem negar os nexos com a indústria, remete para uma criatividade exuberante, de efeito surpreendente na sua aspiração escultórica, arquitectónica e urbana.
Poucas serão as cidades no mundo, da dimensão das Caldas da Rainha, que ostentam uma tão profusa obra plástica em espaço de acesso público. A marca que ela produz na imagem e na identidade caldense é profunda. Caldas não seria a mesma cidade, sem essa presença forte e desafiadora de Ferreira da Silva.
Os trabalhos de Ferreira da Silva operaram uma mudança na forma de fazer intervir a arte em espaço público. Foi com ele que a arte contemporânea invadiu em permanência o espaço de acesso público das Caldas da Rainha.
A presença da arte contemporânea é distinta da de anteriores manifestações artísticas no espaço público. Enquanto estas cultivavam a distância, do alto do pedestal, aquela arrisca a proximidade aos cidadãos. Estas eram consagratórias, e aquela é interpelante. Estas presidiam, imponentes, aos lugares, aquela como que agita, desarruma os lugares. Estas eram legitimadoras, aquela quer surpreender, por vezes questionar, ou mesmo inquietar.
A arte contemporânea entrou na cidade das Caldas pela mão dos escultores reunidos nos Simpósios de Pedra, cuja primeira edição ocorreu em 1986. Do lote extraordinário de peças saídas do primeiro Simppetra fazem parte obras de José Aurélio, Zulmiro de Carvalho, Carlos Barreira, Carlos Marques, João Honório, Silvi Davenport e Thom Janusz.
Apesar de concebidas para integração no espaço público, não foram realizadas para um local determinado. De certo modo eram obras museológicas, ainda que porventura destinadas a um virtual museu de ar livre. Tinham o estatuto de obras nómadas.
No roteiro de obra em espaço público caldense de Ferreira da Silva, apenas uma das peças pode inserir-se no mesmo quadro de obras migrantes. É o caso do monobloco de homenagem ao Rei D. Luís, executada por ocasião do centenário do seu falecimento, em 1989. Exactamente a primeira em termos cronológicos, desta segunda fase de presença do artista na cidade. Mas convirá recordar que a obra se destinava ao Palácio da Ajuda, e a sua integração no acervo do Cencal se deverá a equívocos do caderno de encargos. Todas as restantes foram projectadas para um local, implantadas num local, estruturadas e parcialmente realizadas num local. São verdadeiramente obras “site specific”.
E se algumas se conformaram com as condições impostas pelo local, sobretudo quando de trata de peças parietais, outras assumem uma vocação “invasora” do local, alterando a sua natureza prévia, como acontece com o revestimento do viaduto da Rua Prof. Manuel José António, dotando-o de nova significação, com o obelisco Leonor, frente à Expoeste, ou com a instalação compósita Jardins da Água, uma reinterpretação da Ode Marítima de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, nas traseiras do Chafariz das 5 Bicas. Podemos dizer que nestes três casos, estamos perante realizações artísticas fundadoras do próprio local, “site specific foundation”, se assim as podemos designar.
A derradeira obra de Ferreira da Silva, a que mais tempo lhe exigiu, inventou-a e reinventou-a sucessivamente ao longo de mais de uma década. De entre as várias citações emblemáticas da Ode Marítima que dela constam, há talvez uma que posso destacar:
Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares,
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
Poeta da inquietude, das vozes que vindas de longe ecoam em nós, poderíamos assim identificar Ferreira da Silva. Trazer essa inquietude para o meio de nós, para os locais onde nos cruzamos, onde protestamos ou aplaudimos, onde choramos ou rimos, onde exprimimos indignação, mas também onde nos abraçamos – o espaço público –constituiu um dos mais extraordinários projectos de intervenção urbana do nosso tempo. O espaço público é por definição o elo estruturador da cidade, o ponto de encontro transversal às gerações, aos estratos sócio-económicos e às proveniências culturais. Não deixará de ser uma das pedras mais sólidas da identidade das Caldas da Rainha, na transição do século XX para o século XXI.

João B. Serra

Ferreira da Silva em obra. "Jardins de Água".
Fotografia de Valter Vinagre, 1994.



[1] Em 2009, no âmbito da Festa da Cerâmica, realizou-se no Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha, uma exposição de peças de Ferreira da Silva – cerâmica e pintura – adquiridas pelo município ao artista com vista à constituição de uma Colecção Municipal Ferreira da Silva. O propósito de ampliar este acervo foi corporizado através de um contrato assinado entre a autarquia e o próprio Ferreira da Silva, conforme foi então anunciado pelo Presidente da Câmara, Fernando José da Costa. O catálogo da exposição, comissariada por João B. Serra e editado pela Câmara Municipal, intitula-se Colecção Municipal Ferreira da Silva: Primeiras Aquisições.
[2] O regresso às Caldas de Ferreira da Silva ocorreu em meados da década de 1980, nela tendo papel decisivo Vicente do Carmo, então director de Recursos Humanos da empresa de cerâmica Secla. O artista voltou a colaborar com a Secla e, logo em seguida com o Cencal, de que o próprio Vicente do Carmo viria a ser director. Inicialmente, o seu regime de trabalho implicava uma vinda semanal às Caldas e uma estadia de poucos dias, mas o alargamento das colaborações acabou por determinar a decisão de se transferir para e região.
[3] A administração da Molde Faianças, sob a liderança de Joaquim Beato, proporcionou a Ferreira da Silva as condições ideais para responder a encomendas e exercitar as suas pesquisas e experiências. De facto, o artista fez da fábrica ateliê onde projectava e desenvolvia os projectos, e onde acompanhava a execução dos trabalhos. Deve reconhecer-se que a empresa assumiu nesta relação o principio da responsabilidade artística e criativa, em claro detrimento do critério económico.
[4] No Cencal, o artista fez formação, elaborou e desenvolveu projectos próprios, colaborou na criação da imagem e interveio nos espaços arquitectónicos interiores e exteriores do Centro de Formação. O Cencal detém, por isso, uma importante e diversificada colecção de peças do autor.
[5] As encomendas ao artista foram geradas no seio da Conselho de Administração do Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, sob a direcção de Mário Gualdino Gonçalves.
[6] As encomendas da Câmara Municipal tiveram o impulso e o acompanhamento directo de Fernando José da Costa, que presidiu ao município, entre 1985 e 2013.

Sem comentários:

Enviar um comentário