sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Ferreira da Silva em Monsaraz (2002)

A instalação cerâmica de Ferreira da Silva

realizada em Monsaraz em 2002


O intuito deste texto é reconstituir, com recurso à documentação publicada em catálogo e em jornais, a arquivos fotográficos particulares (hoje integrados no Centro de Documentação Ferreira da Silva constituído pela Associação Património Histórico – Grupo de Estudos), e à memória pessoal, enquanto comissário da exposição, o projecto executado por Ferreira da Silva, em Monsaraz, em 2002[1].

1. As origens do projecto
Os antecedentes deste projecto remontam a 19 de Maio de 2001, quando, em S. Pedro do Corval, apresentei, com Margarida Araújo, uma comunicação intitulada “Ferreira da Silva: cerâmica industrial, cerâmica de autor”, nas Jornadas de Olaria e Cerâmica, VII Festa Ibérica da Olaria e do Barro. A Dr. Ana Paula Amendoeira, responsável técnica pelo Gabinete do Património e Centro Histórico da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz formulou então o desejo de contar com a participação de Ferreira da Silva no programa “Monsaraz Museu Aberto” que se realizaria em Julho de 2002, convidando-me para comissariar a respectiva exposição. Ambos convergíamos na intenção de organizar uma retrospectiva da obra cerâmica de Ferreira da Silva.
O artista rejeitou porém a ideia de uma retrospectiva. Em alternativa, propôs uma exposição representativa da produção que naquele momento o ocupava: pintura e desenho, vidro, azulejaria, escultura cerâmica. Mas fez questão que uma parte das peças a expor tivesse origem em S. Pedro do Corval, desde que lhe fossem criadas condições para tal. No entanto, vicissitudes pessoais supervenientes impediram que Ferreira da Silva realizasse a proposta ambiciosa que fizera.
Ficou de pé, no entanto, o projecto especifico a desenvolver a partir de uma oficina local, tornado possível pela colaboração entre Câmara, associação Património Histórico e, de forma decisiva, a oficina Guimarães & Velho[2].

2. S. Pedro do Corval. A oficina Guimarães & Velho
Em S. Pedro do Corval, a meio caminho entre Reguengos e Monsaraz, não há praticamente rua ou largo onde a presença do trabalho do barro não se faça sentir. Do cartaz promocional ao prato decorado, do utensílio em barro vermelho à peça de ornamento, das mais antigas formas de revestimento até às versões alentejanas de ceifeiras “matrioscas”, toda a povoação exibe com orgulho uma identidade marcada pela olaria.
Os mestres da oficina “Guimarães e Velho” aceitaram a solicitação e o desafio de receberem Ferreira da Silva e com ele colaborar. A oficina ficava na Rua do Jardim. Distribuía-se por dois barracões. O primeiro, com porta para a rua, tinha quatro compartimentos: o das rodas e exposição, o de armazém, o da pintura, o do forno a gás e das fieiras (sistematização tendencial, dado que, na prática, o armazém de peças cruas e cozidas se espalhava um pouco por todo o espaço). O segundo barracão albergava os fornos a lenha e o respectivo combustível. No pátio que separava os dois barracões encontrava-se, a céu aberto, o depósito dos barros e os tanques de mistura e decantação.
Os mestres Guimarães e Velhinho tinham, em 2002, uma experiência de barristas de meio século. Havia trinta anos que eram sócios. Tinham em comum o relacionamento fácil e aberto, uma entrega  franca à conversa, uma rara disponibilidade para aceitar a diferença, disciplina no trabalho, grande versatilidade profissional. Foi esta a oficina que acolheu o ceramista Ferreira Silva, entre 20 de Maio e 5 de Junho daquele ano.
Durante aquelas duas semanas, Ferreira da Silva trabalhou nas instalações da oficina, serviu-se das pastas geralmente aí utilizadas, das suas peças de produção corrente e dos seus utensílios de trabalho, a começar pelas próprias mãos dos dois mestres oleiros. O processo está parcialmente documentado através das imagens que acompanham este texto[3].
Ao longo dos tempo em que permaneceu em S. Pedro, o ceramista concebeu vinte e nove peças, duas das quais de grande dimensões. O projecto que designou inicialmente por “Leda e o Cisne" e mais tarde por “Leda e o Cisne: Mito e Inquietação” tomou forma e coreografia a partir dos alguidares, das panelas, das bilhas, canecas, pratos, etc., abertos por Velhinho e Guimarães nas suas rodas de oleiro de S. Pedro do Corval.
As peças foram executadas em barro da região, pintadas com as tintas disponíveis na oficina, mas a sua cozedura veio a ocorrer nas Caldas da Rainha. Dadas as suas dimensões e exigência técnicas, sobretudo quanto à temperatura de forno, não puderam ser acabadas nas instalações da oficina de S. Pedro do Corval. Foram cozidas na fábrica Molde, das Caldas da Rainha[4].

4. Observação do processo de criação
Ferreira da Silva reencontrou-se aqui com uma das raízes mais fundas do seu trajecto de ceramista, ele que sempre privilegiou o trabalho fisicamente próximo da oficina e da fábrica, enquadrado por ela, sempre que possível atravessado nos procedimentos que lhe são próprios, recorrendo aos produtos e equipamentos nela disponíveis.
Em meados da década de 60, quando pela primeira vez contactei Ferreira da Silva, comandava ele uma pequena oficina dentro do complexo fabril da Secla, nas Caldas da Rainha[5]. Nessa oficina, a que dava a designação que ficou célebre de “Curral”, o ceramista dispunha da colaboração um preparador de pastas, de um oleiro rodista e de um modelador das séries de peças de revestimento. Aí me foi dado assistir, fascinado, a esse duplo processo de metamorfose a que o ceramista submete as suas criações - da matéria plástica para a forma olárica, e desta para a composição artística – num processo de permanente experimentação das possibilidades dos materiais e de permanente busca de caminhos para transgredir os seus limites. Como um maestro que a todo o momento exercita as capacidades da sua orquestra, à espreita do momento em que lhe possa exigir uma sonoridade nova e surpreendente.

5. O tema “Leda e o Cisne”
A edição de 2002 de Monsaraz Museu Aberto decorreu de 20 a 28 de Julho, sob a epígrafe "Que rompam as águas". É provável que essa alusão, inspirada em versos de Eugénio de Andrade, tenha influído na opção temática de Ferreira da Silva.
O artista justificou a escolha do tema com uma alusão à formação recente do grande lago nas imediações de Monsaraz. De facto, a paisagem circundante da vila viu-se alterada a partir de 8 de Fevereiro de 2002, data em que as comportas da barragem do Alqueva foram fechadas, trazendo uma mancha de água até ao sopé do monte onde se ergue a povoação fortificada.
Das muralhas de Monsaraz, olhando o traço de água do Guadiana invadindo as margens, Ferreira da Silva visionou  um novo Cisne que se ergue em direcção a uma Leda expectante. 
Na imaginação do artista, Leda apareceu confinada a Monsaraz, onde Tíndaro a deixou antes de partir à frente dos exércitos espartanos para a Guerra do Peloponeso. Na povoação, a vida decorria serena. Leda passeava ao longo da muralha, perscrutando o horizonte. A estranheza de um fenómeno inesperado - a subida das águas do Guadiana - quebrou a monotonia da pacata Monsaraz. Do lago formado pelas águas derramadas sobre as antigas margens, um belo cisne emerge, acercando-se da Rainha. O encontro é testemunhado por um coro de personagens construídos sobre a memória olárica da região.
Não era a primeira vez que Ferreira da Silva tratava o tema. Esboçara-o em desenho e dera-lhe forma em azulejo e em alto relevo no restaurante “Populus”, hoje rebaptizado “Raízes”, nas Caldas da Rainha, em contexto igualmente próximo de manifestação do elemento água.
Mas a referência fálica que Ferreira da Silva associou ao cisne (já presente nos relevos do "Pópulus"/”Raízes e nos desenhos) também se pode encontrar em elementos arqueológicos frequentes na região, nos menires e cromeleques que atestam a presença de comunidades humanas naquela zona, no Neolítico final e no Calcolítico[6]. Um dos mais espectaculares menires de Monsaraz, o menir do Xarez, tivera de ser retirado da herdade onde estava implantado uns meses de antes de se iniciar o enchimento da barragem, exactamente em Novembro de 2001[7].
Em suma, as formas oláricas produzidas na oficina dos Mestres Velhinho e Guimarães foram recriadas pela mão do ceramista caldense numa alusão poderosa ao princípio da fecundação da terra pela água, origem da vida.

6. Destino da instalação
Não tendo a Câmara Municipal assumido qualquer compromisso prévio com a aquisição da instalação, ela foi desmontada e as suas principais componentes entregues ao artista, que delas dispôs como entendeu.
Foram realizadas diligências pelo comissário para refazer a obra nas Caldas da Rainha, mas a exigência colocada, em acordo com o artista, de que uma reinstalação não fosse associada a “arte efémera”, como acontecera com o projecto de Monsaraz, não teve receptividade junto das instituições contactadas.
No conjunto da obra de Ferreira da Silva, esta experiência, embora na continuidade de formas, processos e temas já ensaiados anteriormente, repercutiu-se sobretudo na convicção de que este caminho – o da elaborações de instalações compósitas, assentes na metamorfose desconstrutiva e reconstrutiva de objectos cerâmicos de produção corrente – deveria ser aprofundado. Nesse percurso está uma nova fase do trabalho nos “Jardins de Água”, o viaduto “Eurídice” e, de modo particularmente incisivo, a exposição “Ofélia II”, série de peças elaboradas na Molde, adquiridas pela Câmara Municipal das Caldas da Rainha e apresentadas em 2009, no decurso da Festa da Cerâmica desse ano[8].

6. Conclusão
A instalação de Ferreira da Silva em Monsaraz foi concebida e executada num contexto específico, cujas elementos integrou e valorizou: o contexto histórico e geográfico (Monsaraz, a sua nova relação com a albufeira do Alqueva, o património megalítico) e as condições de produção: uma oficina de olaria numa localidade (S. Pedro do Corval) onde a actividade dominante é a cerâmica. A esta especificidade, o artista acrescentou a citação de um mito que constitui uma das referências fundamentais das artes plásticas do Ocidente - a história complexa das relações entre Zeus e Leda, história de erotismo e artifício, de sedução e de engano, de perversidade e de inocência, de cumplicidade e violação. E implicou, num registo expressivo, alguns apontamentos de cerâmica caldense, nomeadamente nos processos de modelação, de pintura e vidração, e de cozedura.
O mito de Leda e o Cisne veio assim a Monsaraz contar uma história local num plano global e, de certa forma patentear a história da própria cerâmica: uma arte de transformação e de "ilusão". Neste caso, de transformação dos produtos tradicionais da olaria, cujas formas são ditadas pelos instrumentos - a mãos e a roda - em semióforos[9] que falam de mundos cujas fronteiras foram quebradas pelo desejo de deuses e humanos.

João B. Serra


[1]O catálogo da exposição - Monsaraz Museu Aberto [2002]. Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz – insere um texto de Rafael Salinas Calado, uma biografia do artista e um texto de apresentação da exposição (intitulado “Leda e o cisne em Monsaraz”) ambos da autoria do comissário, João B. Serra. Publiquei também na Gazeta das Caldasuma reportagem sobre a residência artística de Ferreira da Silva em S. Pedro do Corval, a qual saiu na edição de 14 de Junho de 2002. A jornalista Fátima Ferreira assinou na Gazeta das Caldas, notícia da exposição, a 26 de Julho, e uma extensa reportagem a 2 de Agosto de 2002. Em 2007 dediquei um ensaio a este projecto cerâmico de Ferreira da Silva: “Leda e o Cisne. Mito, Artes e Cerâmica”, na obra Do Proscénio de Plauto ao Plateau da Playboy: de Ovídio ao Homevideo. Uma Compilação Erótica, editada pela Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. A documentação fotográfica a que recorri para documentar o presente texto pertenceu ao meu acervo e ao de Margarida Araújo.
[2]É justo salientar o empenho da Dr.ª Ana Paula Amendoeira e o apoio do Sr. Vitor Barão Martelo, Presidente da Câmara, responsável também pelo pelouro da Cultura. Associação Património Histórico – Grupo de Estudos foi envolvida na preparação e acompanhamento da residência do artista em S. Pedro do Corval.
[3]As fotografias originais foram registadas em positivo. As reproduções que aqui figuram resultam de um processo artesanal de fotografia digital do diapositivo.
[4]Nota: o próprio Ferreira da Silva se encarregou do transporte das peças S. Pedro do Corval - Caldas da Rainha - S. Pedro do Corval, ao volante do seu Renault 4L.
[5]João B. Serra [1966], “Visita a uma fábrica de cerâmica”, in Diário de Lisboa (SuplementoJuvenil), edição de 14 de Junho, Lisboa.
[6]Cf. Victor S. Gonçalves e Ana Catarina Sousa, "Novos dados sobre o grupo megalítico de Reguengos de Monsaraz: o limite oriental", in Muita gente, poucas antas? Origens, espaços e contextos do Megalitismo. Actas do II Colóquio Internacional sobre Megalitismo.Victor S. Gonçalves (ccord.), Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2003.
[7]A operação teve, na altura, tratamento jornalístico, tendo os componentes do cromeleque sido transportados para uma propriedade municipal situada junto do Convento da Orada, nas imediações de Monsaraz. Foram reinstalados em 2003.
[8]Vide Colecção Municipal Ferreira da Silva. Primeiras Aquisições. Catálogo de exposição comissariada por João B. Serra. Caldas da Rainha, Câmara Municipal, 2009.

[9]Objectos que perdem o seu valor de uso para serem produtores de significado, representarem o invisível, na definição de Krzysztof Pomian, “Colecção”, in Enciclopédia Einaudi. Vol. I, Memória-História. Lisboa, Imprensa nacional, 1984.