domingo, 31 de maio de 2020

Cerâmica Vieira, Lagoa, São Miguel, Açores

Singularidades da Cerâmica Vieira

Visitei a Cerâmica Vieira por diversas ocasiões, estando em Ponta Delgada envolvido em trabalhos decorrentes de investigações em curso. A primeira dessas visitas, efectuada na segunda metade da década de 1980, teve lugar no momento em que iniciei o estudo da história da cerâmica portuguesa, com especial incidência sobre o tema das relações entre arte e indústria na produção industrial de faiança. 
A implantação de uma unidade de produção de faiança em São Miguel e a sua longevidade não podiam deixar de atrair a curiosidade de quem, como eu, começara a interessar-se pelo processo de industrialização oitocentista no sector da cerâmica. Para que um centro de produção cerâmico na  área da faiança conseguisse vingar, seria necessário reunir diversas condições e, aparentemente, Lagoa estava longe de as poder somar a todas: disponibilidade de matérias primas, de conhecimento técnico, de tecnologia apropriada, de mão de obra preparada, proximidade de mercado consumidor de feição urbana. De facto, a produção de faiança utilitária, orientada preferencialmente para satisfazer o consumidor urbano, com algum poder de compra, era exigente com a normalização das peças e impunha um novo modelo de aprendizagem da mão-de-obra industrial e de transferência do conhecimento científico e técnico.
Na segunda metade do século XIX, as unidades de produção de faiança emergentes, tanto em Lisboa, como no Porto e Vila Nova de Gaia, Coimbra, Aveiro, ou Caldas da Rainha, beneficiaram ou impulsionaram elas próprias aqueles requisitos, suscitando por vezes a intervenção do próprio Estado. Ora, no caso das fábricas de faianças de São Miguel, alguns deles tiveram de ser “inventados” pelos empresários, para poderem ultrapassar lacunas e dificuldades que a muitos pareceram justificadamente insuperáveis.
A primeira dessas lacunas e dificuldades prendeu-se decerto com o acesso a matérias primas. As informações recolhidas indicam que o barro utilizado para produzir pasta de faiança na denominada hoje Cerâmica Vieira, desde a sua fundação, provieram de três fontes de abastecimento: Santa Maria (a única ilha de origem não vulcânica do arquipélago dos Açores), Inglaterra (a importação de argilas inglesas também ocorreu em fábricas do território continental) e Continente português.
É certo que a produção de objectos cerâmicos nos Açores, documentada desde tempos antigos, mostra que a raridade de depósitos de materiais argilosos mais aptos à formação de pastas cerâmicas não foi um impeditivo do trabalho olárico e da difusão de oficinas pelas ilhas. Mas a pasta da faiança, sobretudo a que era submetida e vidragem e segunda cozedura, não se compadecia com o recurso a argilas sem as componentes plásticas e de resistência apropriadas.
A bibliografia disponível, sobretudo a que se corporiza nos estudos do professor Rui Sousa Martins, ajuda a estabelecer o quadro de relações que os fundadores da futura Vieira puderam mobilizar para impor a sua nova fábrica em Lagoa, em 1862. Bernardino Silva era natural de Vila Nova de Gaia e os irmãos Leite Pereira, Manuel e João, embora sejam dados como nascidos em Peso da Régua, outra urbe ribeirinha do Douro, tinham tido contacto directo com a manufactura de faiança do Porto e Vila Nova de Gaia. É, pois, para este centro cerâmico do norte de Portugal, com a sua malha de ligações regionais, nacionais e internacionais, que remete a Fábrica de Lagoa.
Devemos evitar a tentação de dar como plenamente definido em 1862 o projecto que desembocou na Cerâmica Vieira que hoje conhecemos. A determinação dos fundadores chocou-se com inúmeras contrariedades e a continuidade da empresa foi seguramente, e bem cedo, posta em causa, por múltiplos motivos.
A década inicial foi provavelmente preenchida com avanços e recuos, ajustamentos e reajustamentos na estrutura da unidade, tanto do ponto de vista técnico como empresarial. Neste plano, acabaria por se consumar a separação do núcleo inicial de promotores, tendo Bernardino Silva concentrado a propriedade da fábrica inicial, localizada no Largo do Porto dos Carneiros, na Lagoa, enquanto os dois irmãos Leite Pereira criaram cada um uma nova unidade. Aparentemente as tipologias de produção de cada uma das três fábricas seriam distintas. Bernardino centrou-se na louça de barro vermelho, com adopção de um imaginário local. Manuel Leite Pereira, na sua Fábrica Açoriana, instalada em 1872 nas Alminhas, também na Lagoa, além da louça vermelha, lançou-se na faiança. Curta foi a vida da empresa de João Leite Pereira, localizada em Santa Cruz, que ensaiou a faiança branca tal como se produzia no Porto. 
A partir de 1985, as duas fábricas sobreviventes acabaram por confluir na mesma empresa, tendo o proprietário de ambas, António da Silva Martins,  decidido fazer das instalações da antiga Açoriana a sede da Cerâmica Vieira.
A produção de faiança utilitária, no modelo das fábricas da época, convivia, quer com a produção de louça decorativa e artística, quer com a produção de materiais de construção (telha, tijolo, canos para condutas) e de pavimentação (ladrilhos, tijoleiras), sanitários, peças de ornamentação (figuras, colunas, vasos, globos, floreiras, balaustres), de revestimento de habitações (azulejos de interior e de fachada, mosaicos, painéis relevados) e caixas funerárias. Ao longo de mais de cento e cinquenta anos de laboração, muitos destes produtos entraram no catálogo das duas fábricas de Lagoa, em articulação com as dinâmicas da procura interna e externa (onde o turismo desempenhou um papel relevante) e das tendência do gosto, e disso mesmo dei conta nas diversas ocasiões em que visitei as suas instalações. Tratou-se, como nas suas congéneres continentais, nomeadamente a Fábrica das Devesas de Vila Nova de Gaia  (fundada em 1865), de rentabilizar o investimento tecnológico, designadamente na preparação de pastas, feitura de moldes e fornos, e responder ao mercado da construção pública e privada proveniente de diversos pontos da ilha e do arquipélago.
Desse testemunho ficam aqui alguns registos fotográficos que efectuei em 2006, quando a empresa já dispunha de uma colecção de peças e utensílios proto-musealizados. A história desta empresa merece um estudo monográfico, pois os seus produtos e a documentação associada revelarão certamente a singularidade de um processo de industrialização inserido no quadro da longa duração da faiança portuguesa moderna.

João B. Serra 
[Investigador do LIDA (Laboratório de Investigação em Design e Artes, da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha) e professor coordenador jubilado do Instituto Politécnico de Leiria].