quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Caldas da Rainha: a cidade cerâmica depois da crise

Caldas da Rainha

A cidade cerâmica depois da crise


[Texto publicado em Jornal Arquitectos, nº 257, 9-2018, num dossiê temático intitulado "Epicentros pós-industriais: um futuro a Oriente", com este link]

João B. Serra*


Crise de um centro produtor antigo 

Em 2008, após um período de estertor, a SECLA foi encerrada. Fundada em 1945, fora a maior fábrica de cerâmica de sempre das Caldas da Rainha, inovadora nos produtos e nos processos, exportadora para a Europa e América. No ano seguinte, seria a vez da Bordalo Pinheiro ameaçar o fecho. Neste caso, tratava-se de uma empresa centenária, registada em 1908 pela viúva e filho de Rafael Bordalo Pinheiro, que dominara um nicho de mercado de produtos cerâmicos marcados pela exuberância decorativa de inspiração naturalista. Houve toque a rebate na cidade e no país. Estava em risco de desaparecimento um dos mais antigos centros cerâmicos nacionais.
Trinta anos antes, o panorama da actividade cerâmica nas Caldas da Rainha era bem diferente. Vivia-se um momento de euforia, aliás extensivo às regiões do Oeste e Vale do Vouga, estimulado pela adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. Nas Caldas da Rainha, cerca de vinte unidades industriais, de maior ou menor dimensão, tinham vindo juntar-se às duas anteriores. O dinamismo deste sector repercutiu-se também na criação de novas organizações, no plano institucional, económico e cultural e educativo.
Os sinais da crise, associada à mundialização da economia, à alteração dos mercados e dos fluxos, repercutiu-se pesadamente sobre as empresas de cerâmica caldenses. A princípio, houve quem julgasse tratar-se de mudança de ciclo e tentasse meios para resistir à quebra de procura. Mas depressa se percebeu que se estava diante duma alteração estrutural. Hoje nas Caldas da Rainha, há duas fábricas em laboração: a Bordalo Pinheiro e a Molde.

Sobreviver à crise
A crise foi avassaladora. Poucos a tinham antecipado. A Câmara Municipal das Caldas da Rainha reagiu, quando a situação se agudizou e havia que tentar evitar que as ultimas unidades fechassem portas. Efectuou aquisições de moldes e peças à Bordalo Pinheiro e à Molde, prestando-lhes desta forma auxílio financeiro indirecto. À Bordalo Pinheiro adquiriu também património edificado. Tratava-se das antigas instalações fabris e comerciais e da área social (bar e cantina dos trabalhadores), localizadas na área histórica da cidade[1].
A actuação da Câmara aliviou momentaneamente a pressão sobre estas duas empresas, mas não foi decisiva para lhes garantir a continuidade. O seu principal resultado foi o enriquecimento das colecções municipais, reforçado, aliás, através da compra à SECLA de um importante acervo de peças e moldes.
A Bordalo Pinheiro viria a ser alvo de uma intervenção, estimulada pelo Governo e pela banca, por parte de um grande grupo empresarial, a Visabeira, que lhe redefiniu o modelo de negócio, e a Molde, no seu processo de adaptação, cedeu o lugar dominante à terracota e ao grés, em desfavor da faiança.

Novas respostas
Em 2006, a  Câmara criara um pequeno corpo de programação, com o objectivo de lançar um festival centrado na cerâmica. Com duas edições, em 2007 e 2008, ambas lideradas por museólogos, o projecto foi suspenso e retomado em 2014/2015, com outros protagonistas, desenho institucional, ambição e um horizonte de acção programático e garantia orçamental de cinco anos. Foi então designado “Caldas da Rainha Cidade Cerâmica”. No plano comunicacional tomou o nome de Molda.
O programa tem como objectivo principal fazer do conhecimento sobre o lugar da cerâmica nas Caldas da Rainha e concelhos limítrofes um recurso para a valorização do território. Assenta numa rede, articulando os nós disponíveis, consolidando o seu funcionamento numa base de partilha de meios e de objectivos.
O património histórico acumulado[2]é um dos pilares desta rede. Mas é chamado a articular-se com outros pilares e não se cinge ao património consagrado pela museologia. Integra saberes e modelos de transmissão, tecnologias, edificado.
O outro pilar é a criação cerâmica, seja ela de cariz artístico, sustentada numa produção autoral, seja ela resultante das inovações tecnológicas e de design.
O inventário das oficinas de autor espalhadas pelo concelho das Caldas permitiu localizar a existência de cerca de cinco dezenas de oficinas de produção de cerâmica de autor. Na sua maioria, são criadores para os quais a venda das peças que produzem constitui a principal fonte de rendimento. O inquérito administrado revelou que também na sua maioria fizeram aprendizagem oficinal no Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica (CENCAL) e estudos superiores em escolas artísticas, como a Escola de Belas Artes e o Ar.Co de Lisboa, e, principalmente a Escola Superior de Artes e Design (ESAD) das Caldas da Rainha.
Trata-se de um novo sector de actividade cerâmica, que excede, em amplitude e sistema de referências, a pequena estrutura de artesanato outrora vinculada à produção de peças para venda no mercado diário da cidade ou em lojas de artigos regionais.
O terceiro pilar é corporizado pela investigação nas diversas áreas disciplinares convocadas pelas instituições parceiras: a história e as ciências sociais, as ciências dos materiais e a cerâmica, a gestão cultural e a museologia, o urbanismo.
A ESAD/Instituto Politécnico de Leiria viu aprovado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia um projecto de investigação que abarca muitas destas vertentes. Intitula-se “Cerâmica, Património e Produto Sustentável - do ensino à indústria”[3].
O objectivo do projecto centra-se, primeiramente, em reunir e dar consistência à informação disponível, mas dispersa, que potencie soluções sustentáveis no sector da indústria cerâmica; e, em seguida, consolidando e disseminando esse conhecimento, em promover inovação, criando instrumentos para o apoio ao ensino, investigação e desenvolvimento de produtos cerâmicos sustentáveis.
Neste passo, o projecto articular-se-á, quer com o design cerâmico, quer com a constituição de novos instrumentos formativos de cariz pedagógico ou cultural[4].
Na segunda fase do projecto de investigação, os novos instrumentos – sejam eles orientados para o projecto de design cerâmico ou para a formação pedagógica e cultural -, serão usados e testados por alunos em unidades curriculares de projecto, e outras afins. Eles deverão dar origem a propostas de produtos industriais cerâmicos sustentáveis.
Finalmente as novas propostas de produtos cerâmicos sustentáveis serão comunicadas à indústria cerâmica na forma de desenho de projecto ou protótipos, com o intuito de concorrer para a competitividade e internacionalização da indústria nacional. Admite-se que, nalguns casos, a simplicidade dos produtos favoreça situações de auto-emprego dos seus autores, no quadro das políticas de apoios que existam para este efeito.
O projecto terá efeitos na valorização do território, a partir de recursos endógenos. A indústria cerâmica e o desenvolvimento de múltiplas actividades em torno desta produção assumem-se como uma oportunidade de exploração futura para o desenvolvimento sustentável da região, a par de outras iniciativas de inovação territorial, como sejam, além das referidas novas oportunidades de empregabilidade e auto-emprego no âmbito deste projecto, da promoção da cidade de Caldas da Rainha e sua região como uma cidade inteligente e sustentável.
O projecto dotará a cidade de novos recursos: colecções de produtos (que preencherão lacunas museológicas), conteúdos pedagógicos e culturais (que permitirão novas formas de ensino/aprendizagem e de acção cultural) modelos inovadores de ensino/aprendizagem fundamentalmente experimentais (que complementarão a oferta formativa existente), exposições temporárias e permanente (que reforçarão a disseminação do conhecimento), um centro de documentação relativo à história do processo cerâmico (dando sequência e coerência à informação fragmentária sobre o tema), workshops, conferências, etc.
Enfim, a Unesco aprovou recentemente a atribuição à ESAD/IPL de uma cátedra Unesco com a designação “Gestão das Artes e da Cultura – Cidades e Criatividade”, que permitirá alocar à investigação meios igualmente qualificados.
Em suma, o programa Caldas da Rainha Cidade Cerâmica dirige-se fundamentalmente ao fortalecimento de uma rede de conhecimento e criação.

Parceiros. Internacionalização
As primeiras parcerias foram celebradas com escolas, empresas, associações empresariais, sociedades cientificas e de criativos, museus[5].
Duas modalidades de participação estão ao alcance dos parceiros: a execução de parte do programa (neste caso, a entidade responsabiliza-se pela realização de algumas acções, no quadro das suas competências, protocolando as contrapartidas); apresentação de uma proposta de acção candidata a apoio por parte do programa (neste caso, a programação é da exclusiva responsabilidade do proponente, que, reconhecida a sua pertinência pela estrutura de coordenação, a vê inserida no programa geral e apoiada financeiramente).
O programa privilegiou duas frentes de trabalho quanto à internacionalização. Uma, a constituição de uma Associação Portuguesa de Cidades e Vilas com Cerâmica cuja escritura pública ocorreu a 17 de Abril deste ano[6]. A outra, a preparação e apresentação de uma candidatura das Caldas da Rainha a Cidade Criativa da Unesco, a qual deverá ter lugar em 2019.
O título de cidade criativa pressupõe que a cidade articule três condições fundamentais: um património histórico sólido e relevante na área em apreço, condições operativas para a continuidade das práticas criativas e uma estrutura de gestão e promoção experiente. Ambas as redes internacionais são relevantes para a cidade e para a cerâmica. Se a rede das cidades com cerâmica permite reforçar a escala europeia, a rede Unesco permite reforçar a relação com outros espaços, nomeadamente África e América Latina.
A cátedra Unesco, já referida, reforça este caminho.

Impactes nos equipamentos urbanos e no urbanismo
Rastreemos agora os efeitos previsíveis deste programa no dispositivo urbanístico, tanto na realocação e redistribuição de novos equipamentos, como na definição de novos eixos urbanísticos.
Um desses impactes será deduzido do programa museológico que está a ser elaborado para acolher as diversas colecções públicas e privadas de que a cidade dispõe[7].
Mas a mais surpreendente colecção de cerâmica é a que pode ser observada no espaço público urbano e nos edifícios qualificados da cidade, que vai desde revestimentos azulejares a intervenções artísticas de grande significado e por vezes de considerável dimensão.
O reordenamento museográfico obrigará a uma reorganização institucional, construção de novos espaços de exposição, que nalguns casos poderão resultar da conversão de antigos espaços industriais. E, sobretudo, a um novo conceito de museu de cerâmica, para envolver todas as valências acima indiciadas.
O apoio às plataformas criativas, designadamente à actividade dos criadores independentes será conduzido através das seguintes medidas: a construção e equipamento de oficinas a que estes autores possam aceder; a contratualização com as entidades autárquicas (Câmaras e Juntas de Freguesia das Caldas e concelhos limítrofes) de uma rede de residências para ceramistas convidados; o estímulo a iniciativas empresariais (lojas/galerias) de venda de peças de autor; o estímulo ao surgimento de uma plataforma digital que se ocupe do catálogo e distribuição destas produções; a realização anual de uma exposição curatorial de design cerâmico nas montras da cidade; a realização anual de uma exposição organizada em modelo “concept store” aberta aos autores sediados no concelho; o lançamento de um roteiro digital das oficinas[8].
Por outro lado, o programa “Caldas da Rainha Cidade Cerâmica” constitui em 2016 o princípio de uma nova colecção, exclusivamente formada por design cerâmico internacional[9].
Acrescente-se que o Projecto “Cerâmico. Património e Produto Sustentável” também tem reflexos nas colecções, uma vez que o seu plano de trabalhos implica a apresentação periódica dos resultados das investigações.
A Câmara Municipal das Caldas da Rainha cedeu por isso ao projecto parte das antigas instalações fabris da Fábrica Bordalo Pinheiro adquiridas em 2009.
O edifício situa-se num eixo estratégico que vai da Escola de Artes e Design até ao centro histórico da cidade. Praticamente contíguo ao Museu da Fábrica[10], situa-se nas imediações dos Museus nacionais de José Malhoa e de Cerâmica e do complexo museológico  municipal Centro de Artes. Nele se encontram também os antigos Pavilhões do Parque, um edifico icónico do final do século XIX que será reconvertido numa unidade hoteleira temática que terá a cerâmica caldense como elemento inspirador[11].
Este eixo definirá provavelmente um corredor criativo da cidade. Não é um sucedâneo empobrecido do passado industrial, mas uma nova oportunidade para a criação cerâmica contemporânea.



*Professor Coordenador do Instituto Politécnico de Leiria. Comissário da Molda (Programa Caldas da Rainha Cidade Cerâmica). Investigador do Projecto “CP2S Cerâmica, património e produto sustentável – do ensino à indústria” (CENTRO-01-0145-FEDER-23517). Professor titular da Cátedra Unesco “Gestão das Artes e da Cultura, Cidades e Criatividade”.
[1]Esta parte do complexo mais antigo da unidade fabril já tinha sido desactivada, com deslocação da produção para a zona industrial das Caldas da Rainha. A administraçãoda Bordalo Pinheiro projectara, entretanto, uma reconversão do seu edificado antigo num complexo hoteleiro, projecto que não obteve então o beneplácito autárquico.
[2]A produção cerâmica abarcou praticamente todas as tipologias produtivas, desde o barro vermelho à faiança e à porcelana, e percorreu todas as escalas de especificações, desde o utilitário ao decorativo e artístico. Deu azo a modelos de formação adaptados, desde a antiga transmissão de mestres a aprendizes, regulado pelo poder municipal, ao ensino operário disseminado na década de 80 do século XIX, e à institucionalização do ensino profissional e do ensino superior politécnico um século mais tarde.
[3]Além da  Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, estão envolvidos neste projecto o Centro de Investigação em Gestão para a Sustentabilidade da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria o Curso de Conservação e Restauro do Instituto Politécnico de Tomar e o CENCAL.
[4]A título de exemplo: constituição de colecções de máquinas das diferentes fases da indústria cerâmica, de moldes, e um inventário de práticas, fórmulas e resultados de análise de pastas utilizadas, devidamente classificadas.
[5]ESAD, a Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro, o CENCAL, a Associação Empresarial dos Concelhos das Caldas da Rainha e Óbidos, o Museu de José Malhoa e o Museu de Cerâmica, a União de Freguesias de Nossa Senhora do Pópulo, as empresas Molde Faianças e Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, a sociedade científica Património Histórico - Grupo de Estudos, as Ligas dos Amigos dos Museus, duas associação de criativos, a Destino Caldas (Silos – Contentor Criativo) e a Caldas Design Week, e as duas entidades que, no âmbito da acção cultural municipal, gerem os museus de escultura municipal e o centro cultural, o Centro de Artes e o Centro Cultural e de Congressos.
[6]A AptCC tem a sua sede nas Caldas da Rainha, e possibilitará que Portugal tenha assento no Agrupamento Europeu de Cidades Cerâmicas (AeuCC).
[7]A primeira colecção pública de cerâmica caldense foi formada no Museu de José Malhoa (fundado em 1933), mostrada em 1963 e finalmente integrada em Museu próprio, o Museu de Cerâmica, em 1982. Há diversas instituições detentoras de colecções museológicas, como a Câmara Municipal, ou a Fábrica Bordalo Pinheiro. Existem igualmente colecções particulares de louça caldense, uma delas de grande projecção.
[8]Ainda neste âmbito da valorização da cerâmica de autor, o programa prepara um concurso para aquisição anual de cinco peças por parte da Câmara Municipal para as suas ofertas de prestígio, podendo cada uma das peças seleccionadas ter uma edição máxima de dez exemplares.
[9]Com curadoria do designer e professor Fernando Brízio, teve uma primeira exposição em 2016. A gestão da colecção prevê novas aquisições, itinerâncias e um programa de estudos avançados em torno das suas peças, autores e tendências.
[10]O complexo museu/loja/outlet da Fábrica de Faianças também deverá ser a breve trecho alvo de intervenção requalificadora por parte da gestão da Visabeira.
[11]O projecto de nova unidade hoteleira – Montebelo/Bordalo Pinheiro –, em fase de aprovação, deverá entrar em obra ate ao final do corrente ano.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Ferreira da Silva em Monsaraz (2002)

A instalação cerâmica de Ferreira da Silva

realizada em Monsaraz em 2002


O intuito deste texto é reconstituir, com recurso à documentação publicada em catálogo e em jornais, a arquivos fotográficos particulares (hoje integrados no Centro de Documentação Ferreira da Silva constituído pela Associação Património Histórico – Grupo de Estudos), e à memória pessoal, enquanto comissário da exposição, o projecto executado por Ferreira da Silva, em Monsaraz, em 2002[1].

1. As origens do projecto
Os antecedentes deste projecto remontam a 19 de Maio de 2001, quando, em S. Pedro do Corval, apresentei, com Margarida Araújo, uma comunicação intitulada “Ferreira da Silva: cerâmica industrial, cerâmica de autor”, nas Jornadas de Olaria e Cerâmica, VII Festa Ibérica da Olaria e do Barro. A Dr. Ana Paula Amendoeira, responsável técnica pelo Gabinete do Património e Centro Histórico da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz formulou então o desejo de contar com a participação de Ferreira da Silva no programa “Monsaraz Museu Aberto” que se realizaria em Julho de 2002, convidando-me para comissariar a respectiva exposição. Ambos convergíamos na intenção de organizar uma retrospectiva da obra cerâmica de Ferreira da Silva.
O artista rejeitou porém a ideia de uma retrospectiva. Em alternativa, propôs uma exposição representativa da produção que naquele momento o ocupava: pintura e desenho, vidro, azulejaria, escultura cerâmica. Mas fez questão que uma parte das peças a expor tivesse origem em S. Pedro do Corval, desde que lhe fossem criadas condições para tal. No entanto, vicissitudes pessoais supervenientes impediram que Ferreira da Silva realizasse a proposta ambiciosa que fizera.
Ficou de pé, no entanto, o projecto especifico a desenvolver a partir de uma oficina local, tornado possível pela colaboração entre Câmara, associação Património Histórico e, de forma decisiva, a oficina Guimarães & Velho[2].

2. S. Pedro do Corval. A oficina Guimarães & Velho
Em S. Pedro do Corval, a meio caminho entre Reguengos e Monsaraz, não há praticamente rua ou largo onde a presença do trabalho do barro não se faça sentir. Do cartaz promocional ao prato decorado, do utensílio em barro vermelho à peça de ornamento, das mais antigas formas de revestimento até às versões alentejanas de ceifeiras “matrioscas”, toda a povoação exibe com orgulho uma identidade marcada pela olaria.
Os mestres da oficina “Guimarães e Velho” aceitaram a solicitação e o desafio de receberem Ferreira da Silva e com ele colaborar. A oficina ficava na Rua do Jardim. Distribuía-se por dois barracões. O primeiro, com porta para a rua, tinha quatro compartimentos: o das rodas e exposição, o de armazém, o da pintura, o do forno a gás e das fieiras (sistematização tendencial, dado que, na prática, o armazém de peças cruas e cozidas se espalhava um pouco por todo o espaço). O segundo barracão albergava os fornos a lenha e o respectivo combustível. No pátio que separava os dois barracões encontrava-se, a céu aberto, o depósito dos barros e os tanques de mistura e decantação.
Os mestres Guimarães e Velhinho tinham, em 2002, uma experiência de barristas de meio século. Havia trinta anos que eram sócios. Tinham em comum o relacionamento fácil e aberto, uma entrega  franca à conversa, uma rara disponibilidade para aceitar a diferença, disciplina no trabalho, grande versatilidade profissional. Foi esta a oficina que acolheu o ceramista Ferreira Silva, entre 20 de Maio e 5 de Junho daquele ano.
Durante aquelas duas semanas, Ferreira da Silva trabalhou nas instalações da oficina, serviu-se das pastas geralmente aí utilizadas, das suas peças de produção corrente e dos seus utensílios de trabalho, a começar pelas próprias mãos dos dois mestres oleiros. O processo está parcialmente documentado através das imagens que acompanham este texto[3].
Ao longo dos tempo em que permaneceu em S. Pedro, o ceramista concebeu vinte e nove peças, duas das quais de grande dimensões. O projecto que designou inicialmente por “Leda e o Cisne" e mais tarde por “Leda e o Cisne: Mito e Inquietação” tomou forma e coreografia a partir dos alguidares, das panelas, das bilhas, canecas, pratos, etc., abertos por Velhinho e Guimarães nas suas rodas de oleiro de S. Pedro do Corval.
As peças foram executadas em barro da região, pintadas com as tintas disponíveis na oficina, mas a sua cozedura veio a ocorrer nas Caldas da Rainha. Dadas as suas dimensões e exigência técnicas, sobretudo quanto à temperatura de forno, não puderam ser acabadas nas instalações da oficina de S. Pedro do Corval. Foram cozidas na fábrica Molde, das Caldas da Rainha[4].

4. Observação do processo de criação
Ferreira da Silva reencontrou-se aqui com uma das raízes mais fundas do seu trajecto de ceramista, ele que sempre privilegiou o trabalho fisicamente próximo da oficina e da fábrica, enquadrado por ela, sempre que possível atravessado nos procedimentos que lhe são próprios, recorrendo aos produtos e equipamentos nela disponíveis.
Em meados da década de 60, quando pela primeira vez contactei Ferreira da Silva, comandava ele uma pequena oficina dentro do complexo fabril da Secla, nas Caldas da Rainha[5]. Nessa oficina, a que dava a designação que ficou célebre de “Curral”, o ceramista dispunha da colaboração um preparador de pastas, de um oleiro rodista e de um modelador das séries de peças de revestimento. Aí me foi dado assistir, fascinado, a esse duplo processo de metamorfose a que o ceramista submete as suas criações - da matéria plástica para a forma olárica, e desta para a composição artística – num processo de permanente experimentação das possibilidades dos materiais e de permanente busca de caminhos para transgredir os seus limites. Como um maestro que a todo o momento exercita as capacidades da sua orquestra, à espreita do momento em que lhe possa exigir uma sonoridade nova e surpreendente.

5. O tema “Leda e o Cisne”
A edição de 2002 de Monsaraz Museu Aberto decorreu de 20 a 28 de Julho, sob a epígrafe "Que rompam as águas". É provável que essa alusão, inspirada em versos de Eugénio de Andrade, tenha influído na opção temática de Ferreira da Silva.
O artista justificou a escolha do tema com uma alusão à formação recente do grande lago nas imediações de Monsaraz. De facto, a paisagem circundante da vila viu-se alterada a partir de 8 de Fevereiro de 2002, data em que as comportas da barragem do Alqueva foram fechadas, trazendo uma mancha de água até ao sopé do monte onde se ergue a povoação fortificada.
Das muralhas de Monsaraz, olhando o traço de água do Guadiana invadindo as margens, Ferreira da Silva visionou  um novo Cisne que se ergue em direcção a uma Leda expectante. 
Na imaginação do artista, Leda apareceu confinada a Monsaraz, onde Tíndaro a deixou antes de partir à frente dos exércitos espartanos para a Guerra do Peloponeso. Na povoação, a vida decorria serena. Leda passeava ao longo da muralha, perscrutando o horizonte. A estranheza de um fenómeno inesperado - a subida das águas do Guadiana - quebrou a monotonia da pacata Monsaraz. Do lago formado pelas águas derramadas sobre as antigas margens, um belo cisne emerge, acercando-se da Rainha. O encontro é testemunhado por um coro de personagens construídos sobre a memória olárica da região.
Não era a primeira vez que Ferreira da Silva tratava o tema. Esboçara-o em desenho e dera-lhe forma em azulejo e em alto relevo no restaurante “Populus”, hoje rebaptizado “Raízes”, nas Caldas da Rainha, em contexto igualmente próximo de manifestação do elemento água.
Mas a referência fálica que Ferreira da Silva associou ao cisne (já presente nos relevos do "Pópulus"/”Raízes e nos desenhos) também se pode encontrar em elementos arqueológicos frequentes na região, nos menires e cromeleques que atestam a presença de comunidades humanas naquela zona, no Neolítico final e no Calcolítico[6]. Um dos mais espectaculares menires de Monsaraz, o menir do Xarez, tivera de ser retirado da herdade onde estava implantado uns meses de antes de se iniciar o enchimento da barragem, exactamente em Novembro de 2001[7].
Em suma, as formas oláricas produzidas na oficina dos Mestres Velhinho e Guimarães foram recriadas pela mão do ceramista caldense numa alusão poderosa ao princípio da fecundação da terra pela água, origem da vida.

6. Destino da instalação
Não tendo a Câmara Municipal assumido qualquer compromisso prévio com a aquisição da instalação, ela foi desmontada e as suas principais componentes entregues ao artista, que delas dispôs como entendeu.
Foram realizadas diligências pelo comissário para refazer a obra nas Caldas da Rainha, mas a exigência colocada, em acordo com o artista, de que uma reinstalação não fosse associada a “arte efémera”, como acontecera com o projecto de Monsaraz, não teve receptividade junto das instituições contactadas.
No conjunto da obra de Ferreira da Silva, esta experiência, embora na continuidade de formas, processos e temas já ensaiados anteriormente, repercutiu-se sobretudo na convicção de que este caminho – o da elaborações de instalações compósitas, assentes na metamorfose desconstrutiva e reconstrutiva de objectos cerâmicos de produção corrente – deveria ser aprofundado. Nesse percurso está uma nova fase do trabalho nos “Jardins de Água”, o viaduto “Eurídice” e, de modo particularmente incisivo, a exposição “Ofélia II”, série de peças elaboradas na Molde, adquiridas pela Câmara Municipal das Caldas da Rainha e apresentadas em 2009, no decurso da Festa da Cerâmica desse ano[8].

6. Conclusão
A instalação de Ferreira da Silva em Monsaraz foi concebida e executada num contexto específico, cujas elementos integrou e valorizou: o contexto histórico e geográfico (Monsaraz, a sua nova relação com a albufeira do Alqueva, o património megalítico) e as condições de produção: uma oficina de olaria numa localidade (S. Pedro do Corval) onde a actividade dominante é a cerâmica. A esta especificidade, o artista acrescentou a citação de um mito que constitui uma das referências fundamentais das artes plásticas do Ocidente - a história complexa das relações entre Zeus e Leda, história de erotismo e artifício, de sedução e de engano, de perversidade e de inocência, de cumplicidade e violação. E implicou, num registo expressivo, alguns apontamentos de cerâmica caldense, nomeadamente nos processos de modelação, de pintura e vidração, e de cozedura.
O mito de Leda e o Cisne veio assim a Monsaraz contar uma história local num plano global e, de certa forma patentear a história da própria cerâmica: uma arte de transformação e de "ilusão". Neste caso, de transformação dos produtos tradicionais da olaria, cujas formas são ditadas pelos instrumentos - a mãos e a roda - em semióforos[9] que falam de mundos cujas fronteiras foram quebradas pelo desejo de deuses e humanos.

João B. Serra


[1]O catálogo da exposição - Monsaraz Museu Aberto [2002]. Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz – insere um texto de Rafael Salinas Calado, uma biografia do artista e um texto de apresentação da exposição (intitulado “Leda e o cisne em Monsaraz”) ambos da autoria do comissário, João B. Serra. Publiquei também na Gazeta das Caldasuma reportagem sobre a residência artística de Ferreira da Silva em S. Pedro do Corval, a qual saiu na edição de 14 de Junho de 2002. A jornalista Fátima Ferreira assinou na Gazeta das Caldas, notícia da exposição, a 26 de Julho, e uma extensa reportagem a 2 de Agosto de 2002. Em 2007 dediquei um ensaio a este projecto cerâmico de Ferreira da Silva: “Leda e o Cisne. Mito, Artes e Cerâmica”, na obra Do Proscénio de Plauto ao Plateau da Playboy: de Ovídio ao Homevideo. Uma Compilação Erótica, editada pela Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. A documentação fotográfica a que recorri para documentar o presente texto pertenceu ao meu acervo e ao de Margarida Araújo.
[2]É justo salientar o empenho da Dr.ª Ana Paula Amendoeira e o apoio do Sr. Vitor Barão Martelo, Presidente da Câmara, responsável também pelo pelouro da Cultura. Associação Património Histórico – Grupo de Estudos foi envolvida na preparação e acompanhamento da residência do artista em S. Pedro do Corval.
[3]As fotografias originais foram registadas em positivo. As reproduções que aqui figuram resultam de um processo artesanal de fotografia digital do diapositivo.
[4]Nota: o próprio Ferreira da Silva se encarregou do transporte das peças S. Pedro do Corval - Caldas da Rainha - S. Pedro do Corval, ao volante do seu Renault 4L.
[5]João B. Serra [1966], “Visita a uma fábrica de cerâmica”, in Diário de Lisboa (SuplementoJuvenil), edição de 14 de Junho, Lisboa.
[6]Cf. Victor S. Gonçalves e Ana Catarina Sousa, "Novos dados sobre o grupo megalítico de Reguengos de Monsaraz: o limite oriental", in Muita gente, poucas antas? Origens, espaços e contextos do Megalitismo. Actas do II Colóquio Internacional sobre Megalitismo.Victor S. Gonçalves (ccord.), Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2003.
[7]A operação teve, na altura, tratamento jornalístico, tendo os componentes do cromeleque sido transportados para uma propriedade municipal situada junto do Convento da Orada, nas imediações de Monsaraz. Foram reinstalados em 2003.
[8]Vide Colecção Municipal Ferreira da Silva. Primeiras Aquisições. Catálogo de exposição comissariada por João B. Serra. Caldas da Rainha, Câmara Municipal, 2009.

[9]Objectos que perdem o seu valor de uso para serem produtores de significado, representarem o invisível, na definição de Krzysztof Pomian, “Colecção”, in Enciclopédia Einaudi. Vol. I, Memória-História. Lisboa, Imprensa nacional, 1984.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Colaborações entre artistas plásticos e a indústria cerâmica da SECLA

Produto próprio

Colaborações entre artistas plásticos e a indústria cerâmica da SECLA


A presente exposição incide sobre as colaborações entre artistas e indústria cerâmica ensaiadas nas décadas de 1950 e 1960 nas Caldas da Rainha. Os exemplos apresentados reportam-se à SECLA, uma fábrica de faiança que esteve activa entre 1945 e 2008. Escolheu-se uma amostra representativa, mas não exaustiva, dos autores envolvidos nessas colaborações dos trabalhos delas resultantes.                          
SECLA é a abreviatura de Sociedade de Exportação e Cerâmica Limitada. A empresa sucedeu em 1947 à Fábrica Mestre Francisco Elias, criada dois anos antes. Vocacionada para a exportação, a SECLA deu prioridade à inovação, tanto nos processos técnicos, como nos modelos de louça e respectiva decoração. Afastou-se da tipologia de produtos correntes na faiança das Caldas de inspiração naturalista, respondendo aos novos gostos dos consumidores europeus e americanos e introduzindo o conceito de design na sua produção.
Nos primeiros tempos da SECLA, a direcção técnica e artística foi exercida por Alberto Pinto Ribeiro, fundador da empresa. A partir de 1954, essa função foi desempenhada por Hansi Staël, uma pintora de origem húngara. Entre 1959 e 1964, essa responsabilidade foi atribuída ao escultor José Aurélio. Sob a égide de todos eles, diversos artistas portugueses foram acolhidos na SECLA para realizarem experiências em cerâmica. Também procuraram a fábrica, neste período, jovens estrangeiros que pretendiam fazer estágios de aprendizagem em fábricas de cerâmica após a conclusão dos seus cursos artísticos.

Motivações distintas impulsionavam os trabalhos destes artistas, desde os que pretendiam exercitar a pintura e a decoração em produtos cerâmicos, aos que procuravam na plasticidade da pasta resposta aos seus projectos na escultura. Outros ainda era o design que os tentava. Destas experiências poderiam resultar peças únicas, peças susceptíveis de serem editadas em pequenas séries, e, até, modelos que entrassem na produção industrial.
Para a empresa, a esta presença de artistas ficava associado um factor de prestígio. Era uma prática corrente nas fábricas que pretendiam ter a preferência entre o gosto moderno dos consumidores. Algumas das peças acabariam por ser vendidas, embora o aspecto da rentabilidade do investimento não fosse aqui dominante. Acreditava-se, por outro lado, que, na hipótese de algumas das propostas artísticas serem adaptáveis à fabricação em série, este pudesse ser o caminho para vir a ter um produto próprio que individualizasse o seu catálogo em relação ao dos concorrentes.
A esta prática na SECLA deu-se o nome de Estúdio. O Estúdio não era propriamente um espaço dedicado, mas uma condição de acesso dos artistas em trabalho temporário aos saberes, equipamentos e apoios técnicos especializados na fábrica. Entre estes apoios, o mais importante foi o recurso ao saber de um oleiro rodista, natural de Barcelos, Picas do Valle.
Este conceito de Estúdio era tão amplo que nele couberam os próprios administradores da Secla, Alberto Pinto Ribeiro e Fernando da Ponte e Sousa, bem como os artistas contratados pela fábrica, os já referidos consultores Hansi Staël e José Aurélio, ou Ferreira da Silva e Herculano Elias. O Estúdio era afinal um laboratório criativo da Secla, funcionando em paralelo com o circuito fabril, mas mantendo com ele articulações permanentes.

João B. Serra


Esta exposição foi concebida e organizada no âmbito da unidade curricular Oficina de Mediação Cultural II, da licenciatura em Programação e Produção Cultural, orientada pela Prof.ª Lígia Afonso. Insere-se no Projecto de investigação “CP2S Cerâmica, património e produto sustentável – do ensino à indústria” (CENTRO-01-0145-FEDER-23517).

terça-feira, 15 de maio de 2018

Herculano Elias (II)

Breve nota biográfica sobre Herculano Lino Elias

Nasceu em 1932. Desde cedo contacta com o mundo da ceramica caldense, na oficina de seu avô Herculano Elias. Ingressa na Escola Industrial e Comercial Rafael Bordalo Pinheiro, onde conclui o curso de modelação cerãmica. Aí teve como professores, entre outros, os escultores Alberto Vale e Celestino Tocha. De Eduardo Mafra Elias recebe, entretanto, o testemunho da miniatura.
Foi aprendiz na Fábrica da Sociedade de Exportação e Cerâmica (Secla), de 1946 a 1948. Em 1949, aos 17 anos, faz a sua primeira exposição, de miniaturas, no Palácio Foz, em Lisboa, e nas Caldas da Rainha. Tenta reunir os meios para prosseguir os estudos na Escola de Belas Artes, mas sem êxito. Por algum tempo, é admitido no atier do escultor Joao Fragoso, em Lisboa.
Em 1954 é de novo admitido na Secla, onde desempenha diversas funções, na pintura e na modelação até á coordenação do gabinete de estudios de design para a louça de exportação.
Na década de 60, a par da actividade na fábrica, é monitor no curso de formação cerâmica da Escola que frequentara. Executa diversas encomendas para casas comerciais: azulejos, painéis cerâmicos, expõe colectiva e individualmente e executa medalhas em cerãmica.
Em 1886 ingressa no Centro Protocolar de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica das Caldas da Rainha, como monitor na área da modelação cerãmica decorativa.
Participou no planeamento e execução dos programas seguintes: comemorações do centenário da criação da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha (1984), evocação de Francisco Elias pela passagem do cinquentenário da sua morte (1987), Cinquenta anos de cerâmica caldense, 1930-1980 (1990).

É autor da obra Técnicas Tradicionais da Cerãmica das Caldas da Rainha, Edição PH, Colecção “Testemunhos”, 1996.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Herculano Elias (I)

Herculano Elias na tradição cerâmica caldense

João B. Serra
[Professor da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha]

Herculano Lino Elias está referenciado na cerâmica caldense em primeiro lugar pela miniatura, género que cultiva desde a década de 1950, a(per)feiçoando uma tradição de família. Na origem, figura seu tio-avô, Francisco Elias, que faleceu em 1937 sem descendência directa. Eduardo Mafra Elias, sobrinho de Francisco, assegurou a passagem de testemunho, interrompida por morte prematura, na década de 1940.
Francisco Elias foi discípulo e colaborador de Rafael Bordalo Pinheiro na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, na qual ingressou pouco tempo após a respectiva fundação, em 1884. A motivação para a miniatura deve tê-la encontrado junto do próprio Bordalo, mas os códigos da disciplina foi Francisco Elias que os fixou, a partir de 1916, quando estabeleceu o seu próprio atelier de miniaturas.
De facto, entre as peças saídas da criatividade bordaliana, em contraste com o padrão corrente, encontramos um lote de tipos populares em terracota, de pequeno porte (alguns parcos centímetros de altura). E nalgumas das peças de grandes dimensões, Bordalo aplicou reduções de figuras humanas, como na jarra Bethoven datada de 1902 e oferecida a José Relvas. Quando Francisco Elias decidiu estabelecer-se como profissional independente, em 1918, escolheu como área de trabalho cerâmico esta, a miniatura, que o mestre afinal tinha cultivado apenas marginalmente.
Com Francisco Elias, a miniatura foi elevada ao lugar de uma disciplina cerâmica, com um programa e uma tipologia próprios. Em primeiro lugar, o miniaturista opera a partir de uma pasta de faiança sujeita a uma só cozedura. Sendo tributário dos materiais e das técnicas localmente disponíveis, é um género praticado numa condição oficinal onde a destreza do artífice preenche o lugar essencial, em desfavor de equipamentos auxiliares. Esse factor, acentuado pela dispensa do vidro, impõe uma cuidada selecção de argilas, tendo em atenção a variável plasticidade. Na ausência de vidrado, a miniatura recorre ao método da patine, conferindo às peças um brilho suave e discreto, como o que se acentuam as colorações básicas das pastas – vermelho e cinzento – possibilitando a sua integração em qualquer ambiente. É através da patine que se obtém a consolidação das peças, contrariando a fragilidade que aparentam. A miniatura exige o dominio dos procedimentos da escultura, nomedadamente da representação e respectiva escala. Apesar de o autor estar disponível para aceitar reproduzir cada peça, em princípio a produção original é do tipo peça única, sem recurso às técnicas que permitiram a reprodução de múltiplos. A figuração realista, com grande soma de pormenores, e a dimensão da peça tornam praticamente impossível a aplicação do molde à elaboração de miniaturas. Finalmente, a miniatura elege como temática preferencial a dos costumes regionais e cenas históricas, ambos tidos como elementos caracterizadores de uma dada zona geográfica, e representações religiosas tradicionais, designadamente episódios que rodeiam o nascimento de Jesus.
Herculano Eias deixou-se seduzir pela miniatura, a ponto de a ela ter sacrificado inspiração e desejo criador. Os cânones da miniatura e o regime de encomenda que lhe está associado, no dia a dia do atelier, são de facto pouco favoráveis à espontaneidade, uma vez que promovem o rigorismo da representação, postulam o reconhecimento imediato do objecto e não se compadecem com a multiplicação de modelos. Por definição, o catálogo do miniaturista deve permanecer estável, pois uma galeria de figuras e  composições relativamente fixa constitui para o cliente uma garantia de que cada novo exemplar manterá as qualificações dos que o precederam.
Não se quedou, no entanto, Herculano Elias, na perfeita continuidade de um género difinido duas geraçõs antes da sua. Além de reinterpretações e actualizações dos temas “clássicos”, acrescentou novos temas e sobretudo efectuou aprofundamentos tecnológicos, para os quais foram decisivos conhecimentos e experiências obtidos no meio fabril evoluído onde trabalhou (Secla, anos 60 a 80). Merecem destaque, neste aspecto, as novidades que logrou nos patinados e na composição de cenas complexas, como a dos presépios.
Nascido em uma família de ceramistas, neto de um pequeno industrial de cerâmica, Herculano Elias adquiriu uma sólida preparação no âmbito dos processos cerãmicos quer tradicionais quer modernos. Para tal contribuíu, em primeiro lugar, o contacto directo com a actividade cerâmica da oficina de seu avô Herculano Elias, um industrial que na transição do século XIX para o século XX fundou uma unidade produtiva de faiança tipo “palissy das Caldas”. Em segundo lugar, como já foi referido, o contacto igualmente directo com a actividade escultórica do seu tio-avô Francisco Elias, o miniaturista. Das relações familiares deste último resultantes de um segundo casamento, fazia parte o escultor João Fragoso, natural das Caldas da Rainha, em cujo atelier, nos anos 40, em Lisboa, o jovem Herculano Elias estagiou por algum tempo, após a frequência da Escola Industrial Rafael Bordalo Pinheiro. Nos anos 60, Herculano Elias ingressa na Secla, uma grande unidade, onde a inovação industrial se aliava a um conceito igualmente inovador de integração da arte e do design na actividade cerâmica empresarial. Na Secla, Herculano Elias percorreu todos os passos da formação da peça, desde a pintura até aos vários tipos de design – mais criativos e livres ou mais interpretativos e sujeitos a condicionantes rígidos da procura. Essa marcha de aprendizagem e maturação dos processos industriais permitiu incorporar na sua cultura cerâmica influências provenientes de disciplinas e estéticas distintas das que recebera por contacto familiar.
A cidade e os seus museus exibem alguns exemplares que pontuam a viagem do autor pela cerãmica, ao longo da segunda metade do século XX: painéis decorativos de interior (como o da cervejaria “Camaroeiro Real), e exterior (como o da sede dos Bombeiros); escultura pública (como no caso da 4 estações localizadas na rotunda da Rua Leonel Sottomayor); azulejos originais (como os do estabelecimento óptico Ramiro) ou réplicas (como os do monumento a Franciso Elias), serviços de louça utilitaria, peças decorativas (pertencentes ao Museu da Secla).

Exigente e absorvente, a miniatura passou nos anos 80 a ocupar a parte maior da actividade de Herculano Elias, em paralelo com a formação cerâmica, exercida no Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerãmica das Caldas da Rainha (Cencal). Mas não abafou a versatlidade de  ceramista completo de Herculano Elias, que continuou, em exposições individuais, a surpreender pela exploração de novos campos e novas propostas.
A modernidade da cerâmica caldense remonta, como se sabe, a Rafael Bordalo Pinheiro e ao seu trabalho de recriação efectuado sobre o “palissy das Caldas” cuja figura cimneira fora indubitavelmente Manuel Mafra. O seu modelo “laboratorial” fora inspirado pelo movimento “Arts and Crafts” britânico, o que se reflectiu desde logo na estrutura projectada para a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, em 1884. O mesmo modelo veio a ser retomado pela Secla, nos anos 50 do século XX. É um modelo assente na recusa da inevitabilidade da abdicação da arte em face da indústria e na valorização do papel da aprendizagem assistida por artistas e técnicos qualificados.
Em Herculano Elias confluem as genealogias da modernidade cerâmica caldense assim definidas. A mais antiga recebeu-a em legado pelos seus familiares. Da mais recente participou pessoalmente, pelo percurso profissional que desenvolveu na Secla.
Atingida a alta maturidade, Herculano Elias propôs a si próprio um momento de balanço, com a exposição que levou à Galeria Municipal em Maio de 1995. A par de miniaturas elaboradas entre 1980 e 1996, o autor apresentou um conjunto de retratos, em clara assumpção da escultura, em registos distintos de acabamento e composição. Neste trabalho cerãmico, efectuado entre 1970 e 1996 Herculano Elias confirmava o nexo profundo entre miniatura e escultura e demonstrava as suas capacidades neste domínio, retratando com sobriedade e segurança uma galeria de familiares e amigos. Completava a mostra um conjunto de peças cerâmicas decorativas produzidas entre 1960 e 1970, em contexto fabril, testemunhando a participação do autor no processo de renovação da cerâmica de que a Secla foi palco nessa década. Herculano Elias percorria todas as modalidades técnicas: da terracota ao barro vermelho vidrado, do grés à faiança feldspática e à porcelana; do painel cerâmico ao retrato, das formas cerâmicas levantadas à roda à miniatura e à escultura.
É com expectativa que se aguardam as consequências da reflexão gerada no confronto do artista com as suas criações e os seus públicos.

João B. Serra
20 de Maio de 1996