terça-feira, 15 de maio de 2018

Herculano Elias (II)

Breve nota biográfica sobre Herculano Lino Elias

Nasceu em 1932. Desde cedo contacta com o mundo da ceramica caldense, na oficina de seu avô Herculano Elias. Ingressa na Escola Industrial e Comercial Rafael Bordalo Pinheiro, onde conclui o curso de modelação cerãmica. Aí teve como professores, entre outros, os escultores Alberto Vale e Celestino Tocha. De Eduardo Mafra Elias recebe, entretanto, o testemunho da miniatura.
Foi aprendiz na Fábrica da Sociedade de Exportação e Cerâmica (Secla), de 1946 a 1948. Em 1949, aos 17 anos, faz a sua primeira exposição, de miniaturas, no Palácio Foz, em Lisboa, e nas Caldas da Rainha. Tenta reunir os meios para prosseguir os estudos na Escola de Belas Artes, mas sem êxito. Por algum tempo, é admitido no atier do escultor Joao Fragoso, em Lisboa.
Em 1954 é de novo admitido na Secla, onde desempenha diversas funções, na pintura e na modelação até á coordenação do gabinete de estudios de design para a louça de exportação.
Na década de 60, a par da actividade na fábrica, é monitor no curso de formação cerâmica da Escola que frequentara. Executa diversas encomendas para casas comerciais: azulejos, painéis cerâmicos, expõe colectiva e individualmente e executa medalhas em cerãmica.
Em 1886 ingressa no Centro Protocolar de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica das Caldas da Rainha, como monitor na área da modelação cerãmica decorativa.
Participou no planeamento e execução dos programas seguintes: comemorações do centenário da criação da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha (1984), evocação de Francisco Elias pela passagem do cinquentenário da sua morte (1987), Cinquenta anos de cerâmica caldense, 1930-1980 (1990).

É autor da obra Técnicas Tradicionais da Cerãmica das Caldas da Rainha, Edição PH, Colecção “Testemunhos”, 1996.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Herculano Elias (I)

Herculano Elias na tradição cerâmica caldense

João B. Serra
[Professor da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha]

Herculano Lino Elias está referenciado na cerâmica caldense em primeiro lugar pela miniatura, género que cultiva desde a década de 1950, a(per)feiçoando uma tradição de família. Na origem, figura seu tio-avô, Francisco Elias, que faleceu em 1937 sem descendência directa. Eduardo Mafra Elias, sobrinho de Francisco, assegurou a passagem de testemunho, interrompida por morte prematura, na década de 1940.
Francisco Elias foi discípulo e colaborador de Rafael Bordalo Pinheiro na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, na qual ingressou pouco tempo após a respectiva fundação, em 1884. A motivação para a miniatura deve tê-la encontrado junto do próprio Bordalo, mas os códigos da disciplina foi Francisco Elias que os fixou, a partir de 1916, quando estabeleceu o seu próprio atelier de miniaturas.
De facto, entre as peças saídas da criatividade bordaliana, em contraste com o padrão corrente, encontramos um lote de tipos populares em terracota, de pequeno porte (alguns parcos centímetros de altura). E nalgumas das peças de grandes dimensões, Bordalo aplicou reduções de figuras humanas, como na jarra Bethoven datada de 1902 e oferecida a José Relvas. Quando Francisco Elias decidiu estabelecer-se como profissional independente, em 1918, escolheu como área de trabalho cerâmico esta, a miniatura, que o mestre afinal tinha cultivado apenas marginalmente.
Com Francisco Elias, a miniatura foi elevada ao lugar de uma disciplina cerâmica, com um programa e uma tipologia próprios. Em primeiro lugar, o miniaturista opera a partir de uma pasta de faiança sujeita a uma só cozedura. Sendo tributário dos materiais e das técnicas localmente disponíveis, é um género praticado numa condição oficinal onde a destreza do artífice preenche o lugar essencial, em desfavor de equipamentos auxiliares. Esse factor, acentuado pela dispensa do vidro, impõe uma cuidada selecção de argilas, tendo em atenção a variável plasticidade. Na ausência de vidrado, a miniatura recorre ao método da patine, conferindo às peças um brilho suave e discreto, como o que se acentuam as colorações básicas das pastas – vermelho e cinzento – possibilitando a sua integração em qualquer ambiente. É através da patine que se obtém a consolidação das peças, contrariando a fragilidade que aparentam. A miniatura exige o dominio dos procedimentos da escultura, nomedadamente da representação e respectiva escala. Apesar de o autor estar disponível para aceitar reproduzir cada peça, em princípio a produção original é do tipo peça única, sem recurso às técnicas que permitiram a reprodução de múltiplos. A figuração realista, com grande soma de pormenores, e a dimensão da peça tornam praticamente impossível a aplicação do molde à elaboração de miniaturas. Finalmente, a miniatura elege como temática preferencial a dos costumes regionais e cenas históricas, ambos tidos como elementos caracterizadores de uma dada zona geográfica, e representações religiosas tradicionais, designadamente episódios que rodeiam o nascimento de Jesus.
Herculano Eias deixou-se seduzir pela miniatura, a ponto de a ela ter sacrificado inspiração e desejo criador. Os cânones da miniatura e o regime de encomenda que lhe está associado, no dia a dia do atelier, são de facto pouco favoráveis à espontaneidade, uma vez que promovem o rigorismo da representação, postulam o reconhecimento imediato do objecto e não se compadecem com a multiplicação de modelos. Por definição, o catálogo do miniaturista deve permanecer estável, pois uma galeria de figuras e  composições relativamente fixa constitui para o cliente uma garantia de que cada novo exemplar manterá as qualificações dos que o precederam.
Não se quedou, no entanto, Herculano Elias, na perfeita continuidade de um género difinido duas geraçõs antes da sua. Além de reinterpretações e actualizações dos temas “clássicos”, acrescentou novos temas e sobretudo efectuou aprofundamentos tecnológicos, para os quais foram decisivos conhecimentos e experiências obtidos no meio fabril evoluído onde trabalhou (Secla, anos 60 a 80). Merecem destaque, neste aspecto, as novidades que logrou nos patinados e na composição de cenas complexas, como a dos presépios.
Nascido em uma família de ceramistas, neto de um pequeno industrial de cerâmica, Herculano Elias adquiriu uma sólida preparação no âmbito dos processos cerãmicos quer tradicionais quer modernos. Para tal contribuíu, em primeiro lugar, o contacto directo com a actividade cerâmica da oficina de seu avô Herculano Elias, um industrial que na transição do século XIX para o século XX fundou uma unidade produtiva de faiança tipo “palissy das Caldas”. Em segundo lugar, como já foi referido, o contacto igualmente directo com a actividade escultórica do seu tio-avô Francisco Elias, o miniaturista. Das relações familiares deste último resultantes de um segundo casamento, fazia parte o escultor João Fragoso, natural das Caldas da Rainha, em cujo atelier, nos anos 40, em Lisboa, o jovem Herculano Elias estagiou por algum tempo, após a frequência da Escola Industrial Rafael Bordalo Pinheiro. Nos anos 60, Herculano Elias ingressa na Secla, uma grande unidade, onde a inovação industrial se aliava a um conceito igualmente inovador de integração da arte e do design na actividade cerâmica empresarial. Na Secla, Herculano Elias percorreu todos os passos da formação da peça, desde a pintura até aos vários tipos de design – mais criativos e livres ou mais interpretativos e sujeitos a condicionantes rígidos da procura. Essa marcha de aprendizagem e maturação dos processos industriais permitiu incorporar na sua cultura cerâmica influências provenientes de disciplinas e estéticas distintas das que recebera por contacto familiar.
A cidade e os seus museus exibem alguns exemplares que pontuam a viagem do autor pela cerãmica, ao longo da segunda metade do século XX: painéis decorativos de interior (como o da cervejaria “Camaroeiro Real), e exterior (como o da sede dos Bombeiros); escultura pública (como no caso da 4 estações localizadas na rotunda da Rua Leonel Sottomayor); azulejos originais (como os do estabelecimento óptico Ramiro) ou réplicas (como os do monumento a Franciso Elias), serviços de louça utilitaria, peças decorativas (pertencentes ao Museu da Secla).

Exigente e absorvente, a miniatura passou nos anos 80 a ocupar a parte maior da actividade de Herculano Elias, em paralelo com a formação cerâmica, exercida no Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerãmica das Caldas da Rainha (Cencal). Mas não abafou a versatlidade de  ceramista completo de Herculano Elias, que continuou, em exposições individuais, a surpreender pela exploração de novos campos e novas propostas.
A modernidade da cerâmica caldense remonta, como se sabe, a Rafael Bordalo Pinheiro e ao seu trabalho de recriação efectuado sobre o “palissy das Caldas” cuja figura cimneira fora indubitavelmente Manuel Mafra. O seu modelo “laboratorial” fora inspirado pelo movimento “Arts and Crafts” britânico, o que se reflectiu desde logo na estrutura projectada para a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, em 1884. O mesmo modelo veio a ser retomado pela Secla, nos anos 50 do século XX. É um modelo assente na recusa da inevitabilidade da abdicação da arte em face da indústria e na valorização do papel da aprendizagem assistida por artistas e técnicos qualificados.
Em Herculano Elias confluem as genealogias da modernidade cerâmica caldense assim definidas. A mais antiga recebeu-a em legado pelos seus familiares. Da mais recente participou pessoalmente, pelo percurso profissional que desenvolveu na Secla.
Atingida a alta maturidade, Herculano Elias propôs a si próprio um momento de balanço, com a exposição que levou à Galeria Municipal em Maio de 1995. A par de miniaturas elaboradas entre 1980 e 1996, o autor apresentou um conjunto de retratos, em clara assumpção da escultura, em registos distintos de acabamento e composição. Neste trabalho cerãmico, efectuado entre 1970 e 1996 Herculano Elias confirmava o nexo profundo entre miniatura e escultura e demonstrava as suas capacidades neste domínio, retratando com sobriedade e segurança uma galeria de familiares e amigos. Completava a mostra um conjunto de peças cerâmicas decorativas produzidas entre 1960 e 1970, em contexto fabril, testemunhando a participação do autor no processo de renovação da cerâmica de que a Secla foi palco nessa década. Herculano Elias percorria todas as modalidades técnicas: da terracota ao barro vermelho vidrado, do grés à faiança feldspática e à porcelana; do painel cerâmico ao retrato, das formas cerâmicas levantadas à roda à miniatura e à escultura.
É com expectativa que se aguardam as consequências da reflexão gerada no confronto do artista com as suas criações e os seus públicos.

João B. Serra
20 de Maio de 1996