quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Cerâmica e nova criação. Um olhar inteligente e terno sobre a "loiça de vermelho".

Francisca Maria Branco Venâncio defendeu o seu relatório de Projecto Final de Mestrado em Design de Produto em 14 de Dezembro. Trata-se de uma revisitação à gastronomia e à olaria utilitária portuguesa.

O discurso foi construído em função de três propostas: uma assadeira, uma talha e uma cuscuzeira. Cada uma das peças decorre de opções técnicas e histórico-culturais. A assadeira tem uma presença disseminada Noroeste, a talha vinícola está associada sobretudo ao Alentejo e a cuscuzeira ao Nordeste.

Francisca pediu ajuda à antropologia e à gastronomia para justificar a adequação das suas escolhas. E percorreu alguns dos principais centros oleiros – Bisalhães, Nisa, Redondo, São Pedro do Corval, Beringel, Vila de Frades – onde colheu amostras e práticas que reutilizou nas suas propostas.
A tese intitula-se poeticamente Barro: Um Pedaço de Tempo na Alimentação.
O fio do texto é pautado pela experiência pessoal da sua autora, originária de uma família onde se cruzam raízes minhotas e transmontanas e lhe transmitiu a memória da preparação de alimentos, do tempo da mesa partilhado, da elaboração culinária em utensílios de mesa e fogo em barro vermelho.

Trabalho realizado com eficácia e elegância, assente em boa informação - bibliográfica e de recolha directa – soluções técnicas e formais muito perspicazes, um regresso carinhoso e inteligente ao tempo do barro vermelho.


Um regresso onde a nostalgia é temperada pela urgência em retomar a centralidade da cerâmica na vida quotidiana. Francisca não se deixou seduzir pelo artesanato urbano, pela via decorativa da recuperação da olaria. As suas propostas são inovadoras precisamente porque repõem a olaria na cultura de que fazem parte.
Juri: Luis Miguel Pessanha, Renato Bispo,
João Serra, Albio Nascimento

Cidade cerâmica e nova criação. Uma base de dados oportuna

Realizaram-se no passado dia 12 de Dezembro as provas de mestrado de Luís Manuel Lourenço da Silva Ascenso. O novo mestre em gestão cultural trabalhou sobre a hipótese de uma candidatura a apresentar em 2020 pela Câmara Municipal das Caldas da Rainha ao título de Cidade Criativa da Unesco.
A evidência sobre a antiguidade do centro cerâmico caldense está no essencial recolhida. Desde a fundação moderna da cidade, que os responsáveis pelo novo concelho providenciaram a presença de oficinas de oleiros. A historiografia regista a evolução do centro com produtos “em vermelho”, em “vidrado” e de faiança. No século XIX, surgiu uma linha de produção de “faiança de fantasia”, acompanhando, nalguns casos antecipando até, a louça de inspiração “palissy” reinventada em Tours e Paris.
Luís Ascenso quis dar nota da situação actual, registando as unidades fabris em laboração, a tipologia de produtos e os mercados a que se dirigem. Finalmente, tema fundamental da sua investigação, organizou uma base de dados sobre a produção cerâmica de autor directamente relacionada com o meio cerâmico caldense.

O mérito principal desse trabalho paciente de recolha de informação, junto de cada um dos autores, com visita pessoal a cada um dos ateliês/oficinas, foi ter começado esse inventário que, não sendo completo, abrange uma parte significativa do universo de criadores estabelecidos.
O trabalho de Luís Ascenso permite já concluir, quando a esse universo, que ele é na sua quase totalidade constituído por autores que obtiveram formação cerâmica no Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica das Caldas da Rainha e na Escola de Artes e Design das Caldas da Rainha, o primeiro surgido em princípios da década de 80 e a segunda uma década mais tarde.

Em segundo lugar, o inquérito põe em evidencia que estes autores abordam a cerâmica enquanto prática artística ou do design, o que se reflecte tanto no enquadramento disciplinar da sua actividade criativa como nos circuitos de comunicação e mercado em que se procuram inserir.
O estudo de Luís Ascenso ajuda a validar não apenas a candidatura anunciada pela Câmara Municipal, que em breve será objecto de apresentação prévia à Comissão Nacional da Unesco, como os objectivos e metodologias do festival MOLDA, que em 2018 terá a sua segunda edição.


Juri: José Luis de Almeida e Silva, Luisa Arroz Albuquerque,
João Serra, Carla Cardoso

Praça da Loiça. O mercado de cerâmica em bilhete postal ilustrado











Praça da loiça. Caldas da Rainha, décadas de 50/60

Fotografia de Amadeu Ferrari. Anos 60
Arquivo Histórico Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa
Fotografia de Jose Neto Pereira, anos 50
Colecção Património Histórico-Grupo de Estudos

Fotografia de Helena Corrêa de Barros, 1961
Arquivo Histórico Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa




segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Louça na feira das Caldas: 15 de Agosto de 1909

A Ilustração Portuguesa enviou o seu fotógrafo Joshua Benoliei às Caldas, para fazer uma reportagem da feira do 15 de Agosto de 1909. O resultado da visita foi publicado na edição daquela revista de 30 de Agosto do mesmo ano.
A reportagem ocupa três paginas, com 15 fotografias e um curto texto que a seguir se transcreve:

"A feira das Caldas
A feira das Caldas é uma das mais interessantes do país, pelo grande número de pessoas que ali concorrem idas de Lisboa e de outros pontos próximos, principalmente porque ela se faz a 15 e 16 de Agosto, e sendo o primeiro destes dias de festa tradicional, muita gente se dirige à feira da localidade.
A fisionomia dessa feira é curiosa. Grande número de excursionistas pelos arruados, onde as vendedeiras apresentam os seus tabuleiros de bolos e das saborosas cavacas, que são os produtos da vila; há também lugares de louças e de bugigangas do tipo antigo que tornaram célebre a povoação onde Rafael Bordalo devia realizar uma renovação artística; montões de frutas expõem-se naquele tumultuar do mercado no qual fotógrafos ambulantes, pelotiqueiros e vendedores dos mais extravagantes objectos fazem o seu negócio. Nota dominante da feira são os varapaus ferrados, os marmeleiros nodosos e fortes que têm grande venda como as cestas e outros produtos dos arrabaldes que toda a gente quer trazer como recordação  desse passeio a uma das mais pitorescas localidades do país, próximo de Lisboa, famosa pelas suas águas medicinais."



Cinco dos negativos desta incursão caldense de Joshua Benoliel integram hoje o acervo do Arquivo Histórico Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa, onde podem ser consultados. Dois  deles foram editados na Ilustração, os restantes permaneceram inéditos.

Publicamos agora três dessas imagens onde se podem ver, em venda e utilização, louça de barro vermelho da região.




domingo, 10 de dezembro de 2017

Uma tela de Columbano no tecto do Pavilhão de Vendas da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha

Devo a Margarida Araújo a descoberta e investigação da relação entre a obra de Columbano – Alegoria à Cerâmica – e a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha fundada em 1884.
Tudo começou com uma fotografia de Francesco Rocchini que faz hoje parte do acervo do Arquivo Histórico Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa, e que a seguir se reproduz.
Pavilhão de Vendas da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha
[Arquivo Histórico Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa]
Trata-se de um negativo em gelatina e prata de vidro, com as dimensões de 24x30 cm. De acordo com a nota biográfica publicada no site do Arquivo Português de Fotografia, “Francesco Rocchini nasceu em Monte Leone, Itália, por volta do ano de 1820. Veio para Portugal na década de 40 do século XIX (1844 ou 1847) e era marceneiro de profissão. Provavelmente aprendeu o processo do daguerreótipo com K. P. Corentin que em 1851 ensina-lhe a técnica em Lisboa. Fotografou pelo país inteiro, aliando as actividades de marceneiro, fotógrafo, fabricante de máquinas, de acessórios para fotografia e de pequenos laboratórios para trabalhar ao ar livre. Inicialmente localizado na Travessa de Santa Gertrudes, à Estrela, estabeleceu-se depois com um estúdio de fotografia na Travessa da Água Flor, n.º 21, 2º a São Pedro de Alcântara, no decurso do ano de 1865. Foi fornecedor de imagens para revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente a Ilustração Portuguesa, o Panorama Photographico e O Ocidente, e para as Academias de Belas Artes. Foi também fotógrafo da Casa Real portuguesa. Publicou parte dos seus trabalhos em álbuns com albuminas de vistas e monumentos. Rocchini morreu em 1895 continuando o seu estúdio em funcionamento, o seu novo proprietário, J. Nunes Ribeiro, alterou o nome comercial da casa para Fotografia Beleza”.
A imagem regista o interior do Pavilhão de Vendas da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, estabelecida em 1884 nesta vila, cujo director artístico era Rafael Bordalo Pinheiro. Esse pavilhão esteve na mira de diversos fotógrafos, tendo alguns dos clichés sido editados em bilhete postal ilustrado nos finais do século XIX e primeiros anos do século XX.
Mostram-se, em seguida, algumas dessas fotografias da época, quer do interior quer do exterior do Pavilhão.




O que intrigou a dr.ª Margarida Araújo foi a pintura que se pode observar no tecto do Pavilhão de Vendas. Não se encontrou, até agora, em nenhuma outra das imagens conhecidas daquelas instalações.
Ampliando a reprodução fotográfica, foi possível identificar a pintura. Trata-se de uma das alegorias pintadas por Columbano (aliás Columbano Bordalo Pinheiro, irmão de Rafael), esta dedicada à cerâmica.
A obra, que a seguir pode ser observada, faz hoje parte do acervo do Museu de Arte de S. Paulo, onde foi incorporada, por doação, em 1972 (cf. https://www.masp.org.br/acervo/obra/alegoria-da-pintura-sobre-ceramica).

A análise dos elementos que compõem a tela não deixa dúvidas. No lado esquerdo, da pintura podemos ver um forno, da tipologia “Minton” da Fábrica de Faianças (abaixo, insere-se uma fotografia da antiga Fábrica com esses fornos característicos), e, no lado direito, os volumes arquitectónicos do próprio Pavilhão de Vendas. Em baixo à direita, uma talha de grandes proporções ostenta os elementos decorativos comuns à louça naturalista caldense da segunda metade do século XIX.
Fotografia das antigas instalações industriais da
Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha
A pintura está datada de 1885, ou seja do próprio ano em que as instalações industriais da Fábrica foram inauguradas, com os aludidos fornos de refractário para cozedura de faiança utilitária de mesa. Tem as dimensões de 500x300 cm, certamente adequadas ao espaço a que se destinava.
Por motivos que desconheço, mas a que poderá não ser estranha a crise financeira que atingiu irreversivelmente a empresa em 1890, a tela foi retirada do Pavilhão de Vendas, sendo substituída por outra decoração, mais convencional. Deve ter estado exposta nas Caldas provavelmente apenas na segunda metade da década de 1880, quando foi fotografada por Rocchini.



terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Jorge de Almeida Monteiro e a Cerâmica Bombarralense

A história da cerâmica tem no Bombaral duas páginas importantes: a Cerâmica Bombarralense (1944-1954) e a Ceramarte (1969-1991). À primeira está ligado o nome de Jorge de Almeida Monteiro, ao segundo o de Virgílio Correia e sua mulher, Maria da Natividade Mendes (Natas).
Jorge de Almeida Monteiro nasceu no Bombarral em 1908 numa família ligada ao pequeno comércio. Seu pai, Custódio de Almeida Monteiro, tinha uma loja de vidros e louças.
Frequentou nas Caldas da Rainha a Escola Primária Superior e a Escola Industrial e Comercial. Aqui começou pelo curso comercial, que não concluiu, para mais tarde se matricular no de cerâmica.
Casou, em 1938, com Atalanta, filha de Evaristo Judicibus, proprietário de uma tipografia. Almeida Monteiro divide o tempo entre a loja do pai e a gráfica do sogro. Faz trabalhos de reparação de mobiliário, utilizando o cobre e a madeira, aventurando-se por vezes na criação de peças em cobre martelado.
O contacto com Alberto Morais do Vale, em 1940/41, renovou em Jorge Almeida Monteiro o interesse pela cerâmica. Morais do Vale, escultor e ceramista, era professor e director da Escola Técnica das Caldas da Rainha e director artístico de uma oficina de cerâmica nesta cidade - Cerâmica Moderna. Naquela data, organizou no Bombarral um curso de artes plásticas no qual Almeida Monteiro se inscreveu. A frequência do curso estimulou-o a projectar a fundação de uma fábrica de cerâmica.
A Cerâmica Bombarralense L.da surgiria em 1944. Dedicava-se à faiança, produzindo louça decorativa e azulejo. Obteve alvará para produzir porcelana, secção que não chegou a instalar.
Anúncio da constituição da Cerâmica Bombarralense.
Gazeta das Caldas, 1944. [Cortesia de Dóris Santos]
A fábrica tornou-se também local de encontro artístico e político. Júlio Pomar e Alice Jorge, Vasco Pereira da Conceição e Maria Barreira, David de Sousa, Stella de Brito e Hernâni Lopes foram alguns dos artistas que o frequentaram. O ambiente cultural e estético era marcado pelo neo-realismo. Na década de 50, José Dias Coelho fez igualmente experiências de cerâmica na Bombarralense.
Carta de Julio Pomar para Jorge de Almeida Monteiro.
[Cortesia de Dóris Santos]
Foi nela também que, em 1944, o jovem pintor de cerâmica Ferreira da Silva, vindo de Coimbra aos 16 anos, principiou a sua carreira. Em painéis datados de 1954, a assinatura deste artista é acompanhada da menção "Estúdio Jorge Almeida Monteiro", designação provavelmente inspirado no Estúdio que Hansi Staël abrira pela mesma altura na SECLA, nas Caldas da Rainha.
No princípio da década de 1950, o escritor João Fragoso veio à Cerâmica Bombarralense testar e produzir azulejos de uma encomenda para as novas instalações do Regimento de Infantaria das Caldas da Rainha, inauguradas em meados de 1953.
Exemplar de A Nossa Terra, 1950
[Cortesia de Dóris Santos]

Em 1954, a Cerâmica Bombarralense fechou, na sequência de um incêndio que a apanhou descapitalizada. A respectivo alvará, na parte que autorizava a produção de porcelana, foi adquirido por elementos da família alcobacense Da Bernarda, com o qual viria a montar a unidade fabril SPAL.
Almeida Monteiro fundou a seguir uma oficina para os seus trabalhos de cerâmica, gravura e cobre martelado, a qual funcionaria até 1974. Recebeu encomendas de painéis decorativos para diversas empresas.
Paralelamente desenvolveu o interesse pela arqueologia, assinando diversos trabalhos com especialistas nacionais, como Octávio da Veiga Ferreira e Fernando de Almeida. Na Nazaré, localidade à qual a sua actividade se alargou, colaborou com Eduino Borges Garcia e apoiou a criação do Museu Etnográfico e Arqueológico Joaquim Manso.
Esteve presente nas Exposições Gerais de Artes Plásticas da Sociedade Nacional de Belas Artes, entre 1949 e 1954, e, na década de 60, em diversas exposições colectivas em galerias de Lisboa, Porto, Viana do Castelo, Angra do Heroísmo, Funchal, com escultura em metal e com gravura. Também participou na Exposição de Gravadores Portugueses de 1955 e integrou o catálogo da Gravura, Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, de 1959. Trabalhos seus estiveram expostos em Gotemburg (Suécia), Madrid e Roma.
Faleceu em 1983.

Bibliografia
Humberto Sousinha Macatrão, "Jorge de Almeida Monteiro". Jorge de Almeida Monteiro, 1908-1983. Museu Municipal do Bombarral, 1997
Isabel Xavier (coord.), Ferreira da Silva: Obra em Espaço Publico. Caldas da Rainha, 2017.

João B. Serra


segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Ferreira da Silva: leitura urbana

Ferreira da Silva é um dos nomes maiores das artes plásticas do Portugal contemporâneo, com uma obra que abarca o desenho e pintura, a gravura e a escultura, o vitral, a azulejaria e a cerâmica. A sua vastíssima obra cerâmica (faiança, grés, porcelana), que se distribui por todo o país e abarca diversas modalidades de trabalho – desde a pintura ao design, desde a modelação de peças artísticas à produção de cerâmica utilitária – tem uma particular concentração nas Caldas da Rainha e região envolvente, onde começou a trabalhar aos 16 anos. Nasceu no Porto em 1928 e fez estudos de desenho e pintura em Coimbra, antes de iniciar um percurso profissional na indústria cerâmica que passou pelo Bombarral, Alcobaça, Viana do Castelo, Ermesinde, Benedita, Caldas da Rainha, Porto, com regresso às Caldas da Rainha na década de 1980.
Na cidade das Caldas da Rainha, a sua obra cerâmica pode ser vista no Museu da Cerâmica, na colecção Municipal Ferreira da Silva[1], no Cencal (Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica), em diversas colecções particulares e sobretudo em vários edifícios e locais de acesso público. Um Centro de Documentação Ferreira da Silva foi constituído recentemente entre a Câmara Municipal e a Associação Património Histórico. Em resultado dos trabalhos deste Centro, organizou-se um inventário da obra em espaço público de Ferreira da Silva, de que o presente catálogo é tributário.
Ferreira da Silva em obra. Obelisco "Leonor"
Fotografia de João B. Serra, 2001
A estrita e directa articulação entre intervenção artística em espaço urbano e encomenda orientada para o espaço público explica que a parte mais significativa deste tipo de trabalhos se centre nos últimos trinta anos da vida de Ferreira da Silva. É sobretudo após a sua segunda fixação nas Caldas[2] que se reúnem as condições de produção e de procura que viabilizam um crescente volume de obra pública deste autor. As condições de produção encontrou-as no Cencal (criado formalmente em 1981, dotado de instalações próprias em 1985) e na Molde, uma empresa de louça e azulejo fundada em 1988[3]. A procura veio inicialmente de um ou outro serviço do Estado ou empresa pública (o Palácio da Ajuda, o Instituto de Oncologia de Coimbra, a Brisa). O próprio Cencal[4], o Centro Hospitalar das Caldas da Rainha[5] e a Câmara Municipal das Caldas da Rainha[6] foram as entidades que mais e mais volumosas intervenções suscitaram a Ferreira da Silva. A par delas, pode ser colocada a empreitada decorativa que lhe foi atribuída pela administração da Quinta do Pinheiro, Hotel Rural, em Valado de Frades (da empresa A. Varela & Filhas - Agricultura e Turismo Lda.), no final da década de 1990, a qual se prolongou até 2007. Haverá ainda que referir a instalação efémera que realizou a convite do comissário da edição de 2002 do festival “Monsaraz Museu Aberto”, iniciativa da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz.
Ferreira da Silva em obra. Obelisco "Leonor".
Fotografia de Margarida Araújo. 2002
A obra pública cerâmica caldense de Ferreira da Silva é constituída por painéis azulejares, por instalações compósitas onde a cerâmica se cruza com materiais não cerâmicos, como o ferro, o vidro e a pedra. Combina fragmentos cerâmicos resultantes da actividade de produção fabril, cerâmica azulejar de forte coloração e frequente alusão a temas da mitologia clássica, da poesia e da história da ciência. O feminino é presença frequente, sendo especialmente assinalada a figura da rainha Leonor, fundadora das Caldas moderna. Algumas instalações são de escala considerável e foram realizadas por diferentes fases, implicando deslocações ou sobreposições de perspectiva criativa.
A obra de Ferreira da Silva introduziu alterações substantivas na cerâmica portuguesa. É uma obra de alta exigência técnica, com a qual pôde afrontar a escala própria das intervenções em espaço público. É uma obra que, sem negar os nexos com a indústria, remete para uma criatividade exuberante, de efeito surpreendente na sua aspiração escultórica, arquitectónica e urbana.
Poucas serão as cidades no mundo, da dimensão das Caldas da Rainha, que ostentam uma tão profusa obra plástica em espaço de acesso público. A marca que ela produz na imagem e na identidade caldense é profunda. Caldas não seria a mesma cidade, sem essa presença forte e desafiadora de Ferreira da Silva.
Os trabalhos de Ferreira da Silva operaram uma mudança na forma de fazer intervir a arte em espaço público. Foi com ele que a arte contemporânea invadiu em permanência o espaço de acesso público das Caldas da Rainha.
A presença da arte contemporânea é distinta da de anteriores manifestações artísticas no espaço público. Enquanto estas cultivavam a distância, do alto do pedestal, aquela arrisca a proximidade aos cidadãos. Estas eram consagratórias, e aquela é interpelante. Estas presidiam, imponentes, aos lugares, aquela como que agita, desarruma os lugares. Estas eram legitimadoras, aquela quer surpreender, por vezes questionar, ou mesmo inquietar.
A arte contemporânea entrou na cidade das Caldas pela mão dos escultores reunidos nos Simpósios de Pedra, cuja primeira edição ocorreu em 1986. Do lote extraordinário de peças saídas do primeiro Simppetra fazem parte obras de José Aurélio, Zulmiro de Carvalho, Carlos Barreira, Carlos Marques, João Honório, Silvi Davenport e Thom Janusz.
Apesar de concebidas para integração no espaço público, não foram realizadas para um local determinado. De certo modo eram obras museológicas, ainda que porventura destinadas a um virtual museu de ar livre. Tinham o estatuto de obras nómadas.
No roteiro de obra em espaço público caldense de Ferreira da Silva, apenas uma das peças pode inserir-se no mesmo quadro de obras migrantes. É o caso do monobloco de homenagem ao Rei D. Luís, executada por ocasião do centenário do seu falecimento, em 1989. Exactamente a primeira em termos cronológicos, desta segunda fase de presença do artista na cidade. Mas convirá recordar que a obra se destinava ao Palácio da Ajuda, e a sua integração no acervo do Cencal se deverá a equívocos do caderno de encargos. Todas as restantes foram projectadas para um local, implantadas num local, estruturadas e parcialmente realizadas num local. São verdadeiramente obras “site specific”.
E se algumas se conformaram com as condições impostas pelo local, sobretudo quando de trata de peças parietais, outras assumem uma vocação “invasora” do local, alterando a sua natureza prévia, como acontece com o revestimento do viaduto da Rua Prof. Manuel José António, dotando-o de nova significação, com o obelisco Leonor, frente à Expoeste, ou com a instalação compósita Jardins da Água, uma reinterpretação da Ode Marítima de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, nas traseiras do Chafariz das 5 Bicas. Podemos dizer que nestes três casos, estamos perante realizações artísticas fundadoras do próprio local, “site specific foundation”, se assim as podemos designar.
A derradeira obra de Ferreira da Silva, a que mais tempo lhe exigiu, inventou-a e reinventou-a sucessivamente ao longo de mais de uma década. De entre as várias citações emblemáticas da Ode Marítima que dela constam, há talvez uma que posso destacar:
Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares,
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
Poeta da inquietude, das vozes que vindas de longe ecoam em nós, poderíamos assim identificar Ferreira da Silva. Trazer essa inquietude para o meio de nós, para os locais onde nos cruzamos, onde protestamos ou aplaudimos, onde choramos ou rimos, onde exprimimos indignação, mas também onde nos abraçamos – o espaço público –constituiu um dos mais extraordinários projectos de intervenção urbana do nosso tempo. O espaço público é por definição o elo estruturador da cidade, o ponto de encontro transversal às gerações, aos estratos sócio-económicos e às proveniências culturais. Não deixará de ser uma das pedras mais sólidas da identidade das Caldas da Rainha, na transição do século XX para o século XXI.

João B. Serra

Ferreira da Silva em obra. "Jardins de Água".
Fotografia de Valter Vinagre, 1994.



[1] Em 2009, no âmbito da Festa da Cerâmica, realizou-se no Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha, uma exposição de peças de Ferreira da Silva – cerâmica e pintura – adquiridas pelo município ao artista com vista à constituição de uma Colecção Municipal Ferreira da Silva. O propósito de ampliar este acervo foi corporizado através de um contrato assinado entre a autarquia e o próprio Ferreira da Silva, conforme foi então anunciado pelo Presidente da Câmara, Fernando José da Costa. O catálogo da exposição, comissariada por João B. Serra e editado pela Câmara Municipal, intitula-se Colecção Municipal Ferreira da Silva: Primeiras Aquisições.
[2] O regresso às Caldas de Ferreira da Silva ocorreu em meados da década de 1980, nela tendo papel decisivo Vicente do Carmo, então director de Recursos Humanos da empresa de cerâmica Secla. O artista voltou a colaborar com a Secla e, logo em seguida com o Cencal, de que o próprio Vicente do Carmo viria a ser director. Inicialmente, o seu regime de trabalho implicava uma vinda semanal às Caldas e uma estadia de poucos dias, mas o alargamento das colaborações acabou por determinar a decisão de se transferir para e região.
[3] A administração da Molde Faianças, sob a liderança de Joaquim Beato, proporcionou a Ferreira da Silva as condições ideais para responder a encomendas e exercitar as suas pesquisas e experiências. De facto, o artista fez da fábrica ateliê onde projectava e desenvolvia os projectos, e onde acompanhava a execução dos trabalhos. Deve reconhecer-se que a empresa assumiu nesta relação o principio da responsabilidade artística e criativa, em claro detrimento do critério económico.
[4] No Cencal, o artista fez formação, elaborou e desenvolveu projectos próprios, colaborou na criação da imagem e interveio nos espaços arquitectónicos interiores e exteriores do Centro de Formação. O Cencal detém, por isso, uma importante e diversificada colecção de peças do autor.
[5] As encomendas ao artista foram geradas no seio da Conselho de Administração do Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, sob a direcção de Mário Gualdino Gonçalves.
[6] As encomendas da Câmara Municipal tiveram o impulso e o acompanhamento directo de Fernando José da Costa, que presidiu ao município, entre 1985 e 2013.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Cerâmica de Olivença de inspiração popular palissy

Devo a Rafael Salinas Calado a indicação da existência,  em Olivença, de uma produção cerâmica, com impacte local significativo, filiada na louça popular de inspiração palissysta das Caldas da Rainha.
O projecto de realizarmos uma visita a Olivença para observar essa produção e eventualmente projectarmos uma exposição a que logo demos o título provisório de “Cerâmica das Caldas de fora das Caldas” nasceu de uma longa conversa efectuada há cerca de 11 anos. Já em tempos evoquei esse encontro com a emoção que decorre de ter sido o último. Rafael Salinas Calado viria a falecer em finais desse ano de 2006.
No Museu de Olivença – que visitei agora – pude verificar o fundamento das indicações de Rafael e do que ali se pode ver, dou conta em seguida.
Transcrevi (com algumas adaptações de expressão) a informação disponível no museu sobre esta produção.
Nos expositores mostra-se o trabalho de três ceramistas oliventinos, os mais representativos do século XX: Francisco Lemos (conhecido por Panassa), António Miranda (O Português) e Juan Rodriguez Rodriguez (Simeão).
Panassa, tecnicamente formado nas Caldas da Rainha, importante centro de cerâmica popular no país vizinho, tem um estilo muito pessoal.
Discípulo de Panassa foi António Miranda, O Português, nascido em Arronches, que deixou quando tinha vinte e quatro anos, para se estabelecer em Olivença.
Contemporâneo de O Português foi Simeão, conhecido pelo nome do pai. Aprendeu o ofício com António Miranda.
As peças expostas têm em comum o uso de motivos decorativos muito cararterísticos , designadamente elementos zoomórficos (peixes, rãs, cães, conchas), anjos e cordas retorcidas, adaptando-se às mais imaginativas funções.
No caso dos trabalhos de Panassa, as peças são dotadas de grande realismo. De rara beleza são os serviços de café, onde se encontra decoração em areado, musgado e pedrado. Os vidrados imitam as cores da paisagem: abundam os tons de verde, preto, castanho, melado e azul.
Entre a louça utilitária doméstica, figuram talhas e potes vidrados, alguidares de cozinha e elemtosqruitectonicos para fachadas e letras e números para identificação das portas das habitações.
Numa das estantes expomos alguns moldes usados na preparação de peça, assim como um prato com vidrado em pó.

[Texto de parede que acompanha a exposição permanente do Museu de Olivença (Museo de Olivenza, Francisco González Santana, tutelado pelo Consorcio Museo Etnográfico Extremeño].