sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Património cerâmico e museologia

Nota sobre um projecto de investigação em curso na ESAD das Caldas da Rainha
A cerâmica é uma actividade transformadora implantada na região centro de Portugal em geral e na das Caldas da Rainha em particular. Essa presença tem uma dimensão histórica sólida, estando documentada desde os finais da Idade Média. Em torno da produção cerâmica, foi acumulado um considerável património de saberes e de tecnologias. A importância social e económica do sector, nas suas múltiplas modalidades, radicou-se no passado e projectou-se nos nossos dias (nota 1).
Estamos perante um recurso endógeno, quer de produtos quer de experiências, que importa conhecer aprofundadamente, e valorizar, atendendo aos imperativos do desenvolvimento do território, da inovação e da sustentabilidade.
A patrimonialização da cerâmica, designadamente a que se tem processado no âmbito museográfico, privilegia, no entanto a feição artística e decorativa das colecções (nota 2).  Os acervos dos museus nacionais, centrados na perspectiva da história da arte, poucos elementos integram sobre o processo cerâmico e respectiva tecnologia  (nota 3), sobre a história das unidades produtivas e respectiva organização (nota 4). A esta tendência poderiam contrapôr-se os museus de fábrica, se não fossem tão raros os casos de empresas que preservaram o seu espólio e cuidaram de o musealizar. Na região das Caldas, a fábrica Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro reuniu o pouco que escapou a décadas de abandono e desinteresse por uma história secular repleta de desafios e experiências. A escassa documentação salva permitiu contudo a publicação recente de um contributo para o conhecimento do processo técnico da faianças oitocentista (nota 5).
É do lado da arqueologia que encontramos o esforço mais consistente para a reconstituição do processo cerâmico pós-medieval em todo o país. Conhecemos hoje alguns dos principais centros de produção de faiança moderna e os seus produtos datados segundo metodologias de análise rigorosas  (nota 6).
O centro produtor caldense, cujas origens remontam aos finais do século XVI não foi, porém, até hoje, alvo de levantamento arqueológico. Algumas hipóteses sobre as suas origens foram no entanto já apresentadas (nota 7). Para o período que aqui particularmente importa, o da industrialização moderna, além dos estudos realizados por João B. Serra e Rafael Salinas Calado sobre a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, dirigida por Rafael Bordalo Pinheiro, e já citados, haverá que referir ainda trabalhos de recolha oral (nota 8).
É neste quadro que o actual projecto pretende intervir: formar uma colecção que documente e ilustre o processo cerâmico industrial, de meados do século XIX em diante, na região das Caldas da Rainha, desde a extracção e preparação das matérias primas, passando pela conformação, pela decoração e cozedura, até à colocação nos mercados dos produtos cerâmicos. Essa colecção servirá finalidades de ensino e investigação, complementando a informação disponibilizada pela museologia actualmente disponível. O projecto entra assim no domínio patrimonial dos saberes técnicos e científicos, correntemente consagrados, sobretudo na Europa, nos Estados  Unidos e no Canadá como museologia da ciência e da técnica ou das artes e ofícios (nota 9).

Notas
1. O tema foi tratado por João B. Serra, em Arte e indústria na cerâmica caldense (1853-1977), Caldas da Rainha, 1991 e “História da Cerâmica das Caldas da Rainha: constantes e linhas de força”, in V Festa Ibérica da Olaria e do Barro/Jornadas Ibéricas de Olaria e Cerâmica, Reguengos de Monsaraz, Câmara Municipal, 2001.
2. Vide os Roteiros dos mais importantes museus portugueses com louça caldense nas suas exposições permanentes: Roteiro: Museu Nacional de Arte Antiga, 2204; Roteiro: Museu de Cerâmica, 2007.
3. Com a excepção da olaria. O Museu da Olaria, em Barcelos, tem promovido a publicação de estudos sobre formas e técnicas e inspirado investigação avançada sobre o tema. Vide Isabel Maria Fernandes, A Loiça preta em Portugal: Estudo Histórico, Modos de fazer e de Usar. Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2012.
4. Uma visão da indústria da região foi delineada na obra coordenada por Alda Mourão Filipe, A Região de Leiria, Identidade e Desenvolvimento: um Percurso Histórico e Geográfico. 2ª edição. Leiria, 2015.
5. Rafael Salinas Calado et alterii, A Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha: de Bordalo Pinheiro à Actualidade. Porto, 2008.
6. Graças aos estudos desenvolvidos sobre a produção de faiança no Porto e em Vila Nova de Gaia, em Coimbra, na Grande Lisboa e aos trabalhos de campo efectuados em Silves e em Trancoso. Cf. Cláudio Torres, “Um forno cerâmico dos séculos XV e XVI na cintura industrial de Lisboa”, in Fours de Potiers et "Testaires" Médiévaux em Méditerranée Occidentale. Méthodes et Résultats. Coloque organisé pour la Casa de Velázquez, Madrid, 8-10 Javier 1987. Madrid, Publications de la Casa de Velázquez, 1990. Mário Varela Gomes, Rosa Varela Gomes, "Cerâmicas Vidradas e Esmaltadas dos Séculos XIV a XVI, do Poço-Cisterna de Silves", in A Cerâmica Medieval no Mediterrâneo Ocidental. Campo Arqueológico de Mértola, 1991. Isabel Luna, Guilherme Cardoso, “Nota preliminar sobre as cerâmicas provenientes do Poço dos Paços do Concelho de Torres Vedras”, In Actas do III Seminário do Património da Região Oeste, Ed. Câmara Municipal do Cadaval, 2006. Rafael Salinas Calado, “Aspectos da faiança portuguesa do século XVII e alguns antecedentes históricos”. In Faiança portuguesa 1600 –1660. Amesterdão/Lisboa, Historish Museum/Secretaria de Estado da Cultura 1987. “Breve história da faiança em Portugal. In Itinerário da Faiança do Porto e Gaia. Porto, Museu Nacional de Soares dos Reis, 2001. Paulo Dórdio Gomes, Ricardo Jorge Teixeira; Anabela Sá, “Faianças do Porto e Gaia: o recente contributo da arqueologia”. In Itinerário da Faiança do Porto e Gaia. Porto, Museu Nacional de Soares dos Reis, 2001. Tânia Manuel Casimiro, “Faiança portuguesa: datação e evolução crono-estilística”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 16, 2013. Luís Sebastian, A Produção Oleira de Faiança em Portugal (Séculos XVI-XVIII). Dissertação de Doutoramento em História com especialidade de Arqueologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2010. Faiança Portuguesa de Olaria na Intervenção Arqueológica no Mosteiro de S. João de Tarouca. Porto, Direcção Regional da Cultura do Norte, 2015.
7. Vide Rui André Alves Trindade, Revestimentos Cerâmicos Portugueses, Meados do Século XIV à Primeira metade do Século XVI. Lisboa, 2007.
8. João B. Serra e Isabel Xavier efectuaram em 1992 entrevistas orais com os ceramistas António Cardoso, Herculano Elias, Ferreira da Silva e Armando Correia, tendo as informações recolhidas sido vertidas nos estudos que ambos elaboraram para o catálogo 50 anos da Cerâmica Caldense, 1930-1980, Caldas da Rainha, 1990. Um depoimento de um dos ceramistas foi recolhido em livro: Herculano Elias, Técnicas Tradicionais da Cerâmica das Caldas da Rainha. Caldas da Rainha, 1996.
9. Serge Chambaud (dir.), Le Musée des Arts et Métiers: Guide des Collections. Paris, 2013. Catherine Ballé, “Les sciences et techniques, une tradition muséale”, Revue do Musée des Arts et Métiers, nº 51/52, 2010. Philippe Mairot, “Musée et technique”, Terrain, Revue d’Ethnologie de l’Europe, nº 16, 1991.Les Musées des Sciences et de la Technologie. Paris Unesco, 2000. Bernard Schiele (dir), Science Centers for this Century. Québec, 2000. Sílvio A. Bedini et alterii, Museums of Science and Technology. Chicago, 1965.
João B. Serra




Utensílios da manufactura da ceramica, finais do século XIX

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