Nota
sobre um projecto de investigação em curso na ESAD das Caldas da Rainha
A cerâmica é uma actividade
transformadora implantada na região centro de Portugal em geral e na das Caldas
da Rainha em particular. Essa presença tem uma dimensão histórica sólida,
estando documentada desde os finais da Idade Média. Em torno da produção
cerâmica, foi acumulado um considerável património de saberes e de tecnologias.
A importância social e económica do sector, nas suas múltiplas modalidades,
radicou-se no passado e projectou-se nos nossos dias (nota 1).
Estamos perante um recurso endógeno,
quer de produtos quer de experiências, que importa conhecer aprofundadamente, e
valorizar, atendendo aos imperativos do desenvolvimento do território, da
inovação e da sustentabilidade.
A patrimonialização da cerâmica,
designadamente a que se tem processado no âmbito museográfico, privilegia, no
entanto a feição artística e decorativa das colecções (nota 2). Os acervos dos museus nacionais, centrados
na perspectiva da história da arte, poucos elementos integram sobre o processo
cerâmico e respectiva tecnologia (nota 3), sobre a história das
unidades produtivas e respectiva organização (nota 4). A esta tendência
poderiam contrapôr-se os museus de fábrica, se não fossem tão raros os casos de
empresas que preservaram o seu espólio e cuidaram de o musealizar. Na região
das Caldas, a fábrica Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro reuniu o pouco que
escapou a décadas de abandono e desinteresse por uma história secular repleta
de desafios e experiências. A escassa documentação salva permitiu contudo a
publicação recente de um contributo para o conhecimento do processo técnico da
faianças oitocentista (nota 5).
É do lado da arqueologia que
encontramos o esforço mais consistente para a reconstituição do processo
cerâmico pós-medieval em todo o país. Conhecemos hoje alguns dos principais
centros de produção de faiança moderna e os seus produtos datados segundo
metodologias de análise rigorosas (nota 6).
O centro produtor caldense, cujas
origens remontam aos finais do século XVI não foi, porém, até hoje, alvo de
levantamento arqueológico. Algumas hipóteses sobre as suas origens foram no
entanto já apresentadas (nota 7). Para o período que aqui particularmente
importa, o da industrialização moderna, além dos estudos realizados por João B.
Serra e Rafael Salinas Calado sobre a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha,
dirigida por Rafael Bordalo Pinheiro, e já citados, haverá que referir ainda
trabalhos de recolha oral (nota 8).
É neste quadro que o actual projecto
pretende intervir: formar uma colecção que documente e ilustre o processo
cerâmico industrial, de meados do século XIX em diante, na região das Caldas da
Rainha, desde a extracção e preparação das matérias primas, passando pela
conformação, pela decoração e cozedura, até à colocação nos mercados dos
produtos cerâmicos. Essa colecção servirá finalidades de ensino e investigação,
complementando a informação disponibilizada pela museologia actualmente disponível.
O projecto entra assim no domínio patrimonial dos saberes técnicos e
científicos, correntemente consagrados, sobretudo na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá como museologia da
ciência e da técnica ou das artes e ofícios (nota
9).
Notas
1.
O tema foi tratado por João B. Serra, em Arte e indústria na cerâmica caldense
(1853-1977), Caldas da Rainha, 1991 e “História da Cerâmica
das Caldas da Rainha: constantes e linhas de força”, in V Festa
Ibérica da Olaria e do Barro/Jornadas Ibéricas de Olaria e Cerâmica, Reguengos de Monsaraz, Câmara
Municipal, 2001.
2. Vide os
Roteiros dos mais importantes museus portugueses com louça caldense nas suas
exposições permanentes: Roteiro: Museu
Nacional de Arte Antiga, 2204; Roteiro:
Museu de Cerâmica, 2007.
3. Com a excepção
da olaria. O Museu da Olaria, em Barcelos, tem promovido a publicação de
estudos sobre formas e técnicas e inspirado investigação avançada sobre o tema.
Vide Isabel Maria Fernandes, A Loiça
preta em Portugal: Estudo Histórico, Modos de fazer e de Usar. Instituto de
Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2012.
4. Uma visão da indústria da região foi
delineada na obra coordenada por Alda Mourão Filipe, A Região de Leiria, Identidade e
Desenvolvimento: um Percurso Histórico e Geográfico.
2ª edição. Leiria, 2015.
5. Rafael Salinas Calado et alterii, A Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha:
de Bordalo Pinheiro à Actualidade. Porto, 2008.
6. Graças aos estudos desenvolvidos sobre
a produção de faiança no Porto e em Vila Nova de Gaia, em Coimbra, na Grande
Lisboa e aos trabalhos de campo efectuados em Silves e em Trancoso. Cf. Cláudio
Torres, “Um forno cerâmico dos séculos XV e XVI na cintura industrial de
Lisboa”, in Fours de Potiers et
"Testaires" Médiévaux em Méditerranée Occidentale. Méthodes et
Résultats. Coloque organisé pour la Casa de Velázquez, Madrid, 8-10 Javier 1987.
Madrid, Publications de la Casa de Velázquez, 1990. Mário Varela Gomes, Rosa
Varela Gomes, "Cerâmicas Vidradas e Esmaltadas dos Séculos XIV a XVI, do
Poço-Cisterna de Silves", in A
Cerâmica Medieval no Mediterrâneo Ocidental. Campo Arqueológico de Mértola,
1991. Isabel Luna, Guilherme Cardoso, “Nota preliminar sobre as cerâmicas
provenientes do Poço dos Paços do Concelho de Torres Vedras”, In Actas do III Seminário do Património da
Região Oeste, Ed. Câmara Municipal do Cadaval, 2006. Rafael Salinas Calado,
“Aspectos da faiança portuguesa do século XVII e alguns antecedentes
históricos”. In Faiança portuguesa 1600
–1660. Amesterdão/Lisboa, Historish Museum/Secretaria de Estado da Cultura
1987. “Breve história da faiança em Portugal. In Itinerário da Faiança do Porto e Gaia. Porto, Museu Nacional de
Soares dos Reis, 2001. Paulo Dórdio Gomes, Ricardo Jorge Teixeira; Anabela Sá,
“Faianças do Porto e Gaia: o recente contributo da arqueologia”. In Itinerário da Faiança do Porto e Gaia.
Porto, Museu Nacional de Soares dos Reis, 2001. Tânia Manuel Casimiro,
“Faiança portuguesa: datação e evolução crono-estilística”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, vol.
16, 2013. Luís Sebastian, A Produção
Oleira de Faiança em Portugal (Séculos XVI-XVIII). Dissertação de
Doutoramento em História com especialidade de Arqueologia, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2010. Faiança Portuguesa de Olaria na Intervenção
Arqueológica no Mosteiro de S. João de Tarouca. Porto, Direcção Regional da
Cultura do Norte, 2015.
7. Vide Rui André Alves Trindade, Revestimentos Cerâmicos Portugueses, Meados
do Século XIV à Primeira metade do Século XVI. Lisboa, 2007.
8. João B. Serra e Isabel Xavier
efectuaram em 1992 entrevistas orais com os ceramistas António Cardoso,
Herculano Elias, Ferreira da Silva e Armando Correia, tendo as informações
recolhidas sido vertidas nos estudos que ambos elaboraram para o catálogo 50 anos da Cerâmica Caldense, 1930-1980,
Caldas da Rainha, 1990. Um depoimento de um dos ceramistas foi recolhido em
livro: Herculano Elias, Técnicas
Tradicionais da Cerâmica das Caldas da Rainha. Caldas da Rainha, 1996.
9. Serge Chambaud (dir.), Le Musée des Arts et Métiers: Guide des Collections. Paris, 2013. Catherine Ballé, “Les sciences et techniques, une tradition muséale”, Revue do Musée des Arts et Métiers, nº 51/52, 2010. Philippe Mairot, “Musée et technique”, Terrain, Revue d’Ethnologie de l’Europe, nº 16, 1991.Les Musées des Sciences et de la Technologie. Paris Unesco, 2000. Bernard Schiele (dir), Science Centers for this Century. Québec, 2000. Sílvio A. Bedini et alterii, Museums of Science and Technology. Chicago, 1965.
9. Serge Chambaud (dir.), Le Musée des Arts et Métiers: Guide des Collections. Paris, 2013. Catherine Ballé, “Les sciences et techniques, une tradition muséale”, Revue do Musée des Arts et Métiers, nº 51/52, 2010. Philippe Mairot, “Musée et technique”, Terrain, Revue d’Ethnologie de l’Europe, nº 16, 1991.Les Musées des Sciences et de la Technologie. Paris Unesco, 2000. Bernard Schiele (dir), Science Centers for this Century. Québec, 2000. Sílvio A. Bedini et alterii, Museums of Science and Technology. Chicago, 1965.
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