quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Eduardo Constantino (II)

A arte cerâmica de Eduardo Constantino

O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si. E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.”
Sophia de Mello Breyner Andersen, Arte Poética II, 1962

Eduardo Constantino apresenta-nos nesta exposição um conjunto de peças em grés e porcelana que se reclamam de um fio condutor: cerâmica: a cor e a forma. São peças de grande robustez física e conceptual, resultado de um extenso e aprofundado amadurecimento do ceramista. Colocam, sem dúvida, em evidência o modo como o seu autor vem exercitando e reflectindo a forma e a cor na sua própria produção artística e, em geral, na cerâmica contemporânea. Permitem, assim, efectuar uma leitura, não apenas do projecto criativo actual do ceramista, mas de alguns traços do lugar que cativou para a sua obra e que designei, tomando de empréstimo uma formulação corrente no labor poético, por arte cerâmica.
Com uma formação técnica e prática obtida junto de um grande mestre oleiro caldense, o ceramista começou por somar às formas tradicionais o desenho e a pintura que fizera parte da sua prática artística. A arte cerâmica de Eduardo definiu-se, porém, em ruptura com essa adição da pintura à roda, articulando-se em novas combinações entre cor e forma.
Ao introduzir o desenho e a cor no âmago do processo criativo cerâmico, o artista cortou amarras com as formas tradicionais, pôs em causa a noção pictórica de superfície, deixou de lado a simetria, assumiu a distorção, operou recombinações e montagens.
A pintura, mau grado as mudanças históricas a que tem sido sujeita, é sempre uma abordagem a uma superfície, uma tela, uma pele com duas dimensões. É este confinamento que constitui afinal o desafio do pintor: construir nas duas dimensões um jogo de grafismo, luz e sombra que crie uma ilusão visual de disposição e profundidade. A pintura sobre cerâmica obedece às mesmas regras. Ao chamar a cor a intervir na própria composição da obra cerâmica, a pintura não é mais pintura, porque a cor passa agora a ser componente estruturante da tridimensionalidade.
O risco é elevado para o ceramista. É necessário que disponha de um elevado controlo técnico sobre a realização de cada peça, antecipando com segurança o resultado final, e uma sólida experiência, para evitar o experimentalismo errático. O forno, actuando sobre volumes não uniformes, coloca dificuldades adicionais. Importa que o ceramista o tenha como aliado e não com um adversário imprevisível.
Nas peças de Eduardo Constantino é a cor que densifica e ritma o volume. Tanto de um lado como do outro, há aspectos dinâmicos que dialogam e compensam elementos estáticos. Este equilíbrio é crucial. Supõe uma sincronização perfeita, como na dança, dos corpos, entre si, e com a música. Traduz a congruência processual entre modelar, desenhar e pintar.
Esta metáfora pode ser instrumentalizada para referir a obra de Eduardo Constantino. Através da cor se desenvolve um tema, como na composição musical, se destaca uma sobreposição, uma cisão, um acidente, se texturiza os volumes. Em certa medida, é a cor que os cria: ilumina ângulos e perspectivas, oculta ou faz sobressair relevos e depressões. Combina o som e o silêncio. São sempre cores intensas, herdeiras da paleta com que o expressionismo brindou as artes contemporâneas. Ora se erguem efusivas, ora se espraiam, serenas, matizadas pelas memórias das paisagens da Europa do Sul.
Eduardo Constantino no seu ateliê
As peças de Eduardo Constantino não são, no entanto, objectos de pura contemplação visual. A sua percepção completa exige o recurso ao tacto. É como se estivéssemos perante uma reinvenção dos códigos de acesso à escultura sacra medieval, os quais postulavam a existência de cor e o convite ao toque por parte dos fiéis.
Sophia, no texto citado na epigrafe deste ensaio, afirma que o poema, como obra de criação poética, não decorre de uma mera relação com a matéria. Na mera relação com a matéria, teriamos artesanato. É certo que a poesia usa palavras, como a arte cerâmica usa pastas e tintas. E, neste sentido, o poeta é um artesão da palavra, o ceramista um artesão de formas. Mas, escreve, Sophia, as palavras que o poeta escolheu “não foram escolhidas esteticamete pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança”. Para além da aliança com a matéria, a aliança com a vida, o universo.
“Pois a minha poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”,
Escreveu um dia Eduardo Constantino: “Não sou um artista conceptual. Não tenho mensagens a transmitir. [...] Exploro a ‘linguagem’ da cerâmica como um músico de jazz explora a linguagem da música, de um modo espontâneo e visual”.
Sabemos que a espontaneidade do jazz, a improvisação, não é deixada ao acaso do momento, mas, ao contrário, se prepara, se treina, se aperfeiçoa...
Talvez então o ceramista pudesse ter acrescentado ao seu depoimento: a minha cerâmica é o meu “encontro com as vozes e as imagens”, ou, dito de outro modo, com os sons e os silêncios, ou com as cores e as formas.


João B. Serra
Texto publicado em:
Eduardo Constantino/Josselyn Métivier: a Cor e a Forma. Catálogo de exposição realizada no Museu de Cerâmica, Caldas da Rainha, Outubro de 2017

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