A arte cerâmica de Eduardo Constantino
“O verso é denso, tenso como um arco,
exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente
vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre
si. E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho,
o meu reino, a minha vida.”
Sophia
de Mello Breyner Andersen, Arte Poética
II, 1962
Eduardo Constantino apresenta-nos
nesta exposição um conjunto de peças em grés e porcelana que se reclamam de um
fio condutor: cerâmica: a cor e a forma.
São peças de grande robustez física e conceptual, resultado de um extenso e
aprofundado amadurecimento do ceramista. Colocam, sem dúvida, em evidência o
modo como o seu autor vem exercitando e reflectindo a forma e a cor na sua própria
produção artística e, em geral, na cerâmica contemporânea. Permitem, assim, efectuar
uma leitura, não apenas do projecto criativo actual do ceramista, mas de alguns
traços do lugar que cativou para a sua obra e que designei, tomando de
empréstimo uma formulação corrente no labor poético, por arte cerâmica.
Com uma formação técnica e prática
obtida junto de um grande mestre oleiro caldense, o ceramista começou por somar
às formas tradicionais o desenho e a pintura que fizera parte da sua prática
artística. A arte cerâmica de Eduardo
definiu-se, porém, em ruptura com essa adição da pintura à roda, articulando-se
em novas combinações entre cor e forma.
Ao introduzir o desenho e a cor no
âmago do processo criativo cerâmico, o artista cortou amarras com as formas
tradicionais, pôs em causa a noção pictórica de superfície, deixou de lado a
simetria, assumiu a distorção, operou recombinações e montagens.
A pintura, mau grado as mudanças
históricas a que tem sido sujeita, é sempre uma abordagem a uma superfície, uma
tela, uma pele com duas dimensões. É este confinamento que constitui afinal o
desafio do pintor: construir nas duas dimensões um jogo de grafismo, luz e
sombra que crie uma ilusão visual de disposição e profundidade. A pintura sobre
cerâmica obedece às mesmas regras. Ao chamar a cor a intervir na própria composição
da obra cerâmica, a pintura não é mais pintura, porque a cor passa agora a ser componente
estruturante da tridimensionalidade.
O risco é elevado para o ceramista.
É necessário que disponha de um elevado controlo técnico sobre a realização de
cada peça, antecipando com segurança o resultado final, e uma sólida experiência,
para evitar o experimentalismo errático. O forno, actuando sobre volumes não
uniformes, coloca dificuldades adicionais. Importa que o ceramista o tenha como
aliado e não com um adversário imprevisível.
Nas peças de Eduardo Constantino é
a cor que densifica e ritma o volume. Tanto de um lado como do outro, há
aspectos dinâmicos que dialogam e compensam elementos estáticos. Este
equilíbrio é crucial. Supõe uma sincronização perfeita, como na dança, dos
corpos, entre si, e com a música. Traduz a congruência processual entre
modelar, desenhar e pintar.
Esta metáfora pode ser
instrumentalizada para referir a obra de Eduardo Constantino. Através da cor se
desenvolve um tema, como na composição musical, se destaca uma sobreposição,
uma cisão, um acidente, se texturiza os volumes. Em certa medida, é a cor que
os cria: ilumina ângulos e perspectivas, oculta ou faz sobressair relevos e
depressões. Combina o som e o silêncio. São sempre cores intensas, herdeiras da
paleta com que o expressionismo brindou as artes contemporâneas. Ora se erguem
efusivas, ora se espraiam, serenas, matizadas pelas memórias das paisagens da
Europa do Sul.
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Eduardo Constantino no seu ateliê |
As peças de Eduardo Constantino não
são, no entanto, objectos de pura contemplação visual. A sua percepção completa
exige o recurso ao tacto. É como se estivéssemos perante uma reinvenção dos
códigos de acesso à escultura sacra medieval, os quais postulavam a existência
de cor e o convite ao toque por parte dos fiéis.
Sophia, no texto citado na epigrafe
deste ensaio, afirma que o poema, como obra de criação poética, não decorre de
uma mera relação com a matéria. Na mera relação com a matéria, teriamos
artesanato. É certo que a poesia usa palavras, como a arte cerâmica usa pastas
e tintas. E, neste sentido, o poeta é um artesão da palavra, o ceramista um
artesão de formas. Mas, escreve, Sophia, as palavras que o poeta escolheu “não
foram escolhidas esteticamete pela sua beleza, foram escolhidas pela sua
realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma
aliança”. Para além da aliança com a matéria, a aliança com a vida, o universo.
“Pois a minha poesia é a minha
explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação
no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”,
Escreveu um dia Eduardo
Constantino: “Não sou um artista conceptual. Não tenho mensagens a transmitir.
[...] Exploro a ‘linguagem’ da cerâmica como um músico de jazz explora a linguagem
da música, de um modo espontâneo e visual”.
Sabemos que a espontaneidade do
jazz, a improvisação, não é deixada ao acaso do momento, mas, ao contrário, se
prepara, se treina, se aperfeiçoa...
Talvez então o ceramista pudesse
ter acrescentado ao seu depoimento: a
minha cerâmica é o meu “encontro com as vozes e as imagens”, ou, dito de
outro modo, com os sons e os silêncios, ou com as cores e as formas.
João B. Serra
Texto publicado em:
Eduardo Constantino/Josselyn Métivier: a Cor e a Forma. Catálogo de exposição realizada no Museu de Cerâmica, Caldas da Rainha, Outubro de 2017
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