Herculano
Elias na tradição cerâmica caldense
João B. Serra
[Professor
da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha]
Herculano Lino Elias está referenciado na
cerâmica caldense em primeiro lugar pela miniatura, género que cultiva desde a
década de 1950, a(per)feiçoando uma tradição de família. Na origem, figura seu
tio-avô, Francisco Elias, que faleceu em 1937 sem descendência directa. Eduardo
Mafra Elias, sobrinho de Francisco, assegurou a passagem de testemunho,
interrompida por morte prematura, na década de 1940.
Francisco Elias foi discípulo e colaborador
de Rafael Bordalo Pinheiro na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, na qual
ingressou pouco tempo após a respectiva fundação, em 1884. A motivação para a
miniatura deve tê-la encontrado junto do próprio Bordalo, mas os códigos da
disciplina foi Francisco Elias que os fixou, a partir de 1916, quando
estabeleceu o seu próprio atelier de miniaturas.
De facto, entre as peças saídas da
criatividade bordaliana, em contraste com o padrão corrente, encontramos um
lote de tipos populares em terracota, de pequeno porte (alguns parcos
centímetros de altura). E nalgumas das peças de grandes dimensões, Bordalo
aplicou reduções de figuras humanas, como na jarra Bethoven datada de 1902 e
oferecida a José Relvas. Quando Francisco Elias decidiu estabelecer-se como
profissional independente, em 1918, escolheu como área de trabalho cerâmico
esta, a miniatura, que o mestre afinal tinha cultivado apenas marginalmente.
Com Francisco Elias, a miniatura foi elevada
ao lugar de uma disciplina cerâmica, com um programa e uma tipologia próprios.
Em primeiro lugar, o miniaturista opera a partir de uma pasta de faiança
sujeita a uma só cozedura. Sendo tributário dos materiais e das técnicas
localmente disponíveis, é um género praticado numa condição oficinal onde a
destreza do artífice preenche o lugar essencial, em desfavor de equipamentos
auxiliares. Esse factor, acentuado pela dispensa do vidro, impõe uma cuidada
selecção de argilas, tendo em atenção a variável plasticidade. Na ausência de
vidrado, a miniatura recorre ao método da patine, conferindo às peças um brilho
suave e discreto, como o que se acentuam as colorações básicas das pastas –
vermelho e cinzento – possibilitando a sua integração em qualquer ambiente. É
através da patine que se obtém a consolidação das peças, contrariando a
fragilidade que aparentam. A miniatura exige o dominio dos procedimentos da
escultura, nomedadamente da representação e respectiva escala. Apesar de o
autor estar disponível para aceitar reproduzir cada peça, em princípio a
produção original é do tipo peça única, sem recurso às técnicas que permitiram
a reprodução de múltiplos. A figuração realista, com grande soma de pormenores,
e a dimensão da peça tornam praticamente impossível a aplicação do molde à
elaboração de miniaturas. Finalmente, a miniatura elege como temática
preferencial a dos costumes regionais e cenas históricas, ambos tidos como
elementos caracterizadores de uma dada zona geográfica, e representações
religiosas tradicionais, designadamente episódios que rodeiam o nascimento de
Jesus.
Herculano Eias deixou-se seduzir pela
miniatura, a ponto de a ela ter sacrificado inspiração e desejo criador. Os
cânones da miniatura e o regime de encomenda que lhe está associado, no dia a
dia do atelier, são de facto pouco favoráveis à espontaneidade, uma vez que
promovem o rigorismo da representação, postulam o reconhecimento imediato do
objecto e não se compadecem com a multiplicação de modelos. Por definição, o
catálogo do miniaturista deve permanecer estável, pois uma galeria de figuras
e composições relativamente fixa
constitui para o cliente uma garantia de que cada novo exemplar manterá as
qualificações dos que o precederam.
Não se quedou, no entanto, Herculano Elias,
na perfeita continuidade de um género difinido duas geraçõs antes da sua. Além
de reinterpretações e actualizações dos temas “clássicos”, acrescentou novos
temas e sobretudo efectuou aprofundamentos tecnológicos, para os quais foram
decisivos conhecimentos e experiências obtidos no meio fabril evoluído onde
trabalhou (Secla, anos 60 a 80). Merecem destaque, neste aspecto, as novidades
que logrou nos patinados e na composição de cenas complexas, como a dos
presépios.
Nascido em uma família de ceramistas, neto
de um pequeno industrial de cerâmica, Herculano Elias adquiriu uma sólida
preparação no âmbito dos processos cerãmicos quer tradicionais quer modernos.
Para tal contribuíu, em primeiro lugar, o contacto directo com a actividade
cerâmica da oficina de seu avô Herculano Elias, um industrial que na transição
do século XIX para o século XX fundou uma unidade produtiva de faiança tipo
“palissy das Caldas”. Em segundo lugar, como já foi referido, o contacto
igualmente directo com a actividade escultórica do seu tio-avô Francisco Elias,
o miniaturista. Das relações familiares deste último resultantes de um segundo
casamento, fazia parte o escultor João Fragoso, natural das Caldas da Rainha,
em cujo atelier, nos anos 40, em Lisboa, o jovem Herculano Elias estagiou por
algum tempo, após a frequência da Escola Industrial Rafael Bordalo Pinheiro.
Nos anos 60, Herculano Elias ingressa na Secla, uma grande unidade, onde a
inovação industrial se aliava a um conceito igualmente inovador de integração
da arte e do design na actividade cerâmica empresarial. Na Secla, Herculano
Elias percorreu todos os passos da formação da peça, desde a pintura até aos
vários tipos de design – mais criativos e livres ou mais interpretativos e
sujeitos a condicionantes rígidos da procura. Essa marcha de aprendizagem e
maturação dos processos industriais permitiu incorporar na sua cultura cerâmica
influências provenientes de disciplinas e estéticas distintas das que recebera
por contacto familiar.
A cidade e os seus museus exibem alguns
exemplares que pontuam a viagem do autor pela cerãmica, ao longo da segunda
metade do século XX: painéis decorativos de interior (como o da cervejaria
“Camaroeiro Real), e exterior (como o da sede dos Bombeiros); escultura pública
(como no caso da 4 estações localizadas na rotunda da Rua Leonel Sottomayor);
azulejos originais (como os do estabelecimento óptico Ramiro) ou réplicas (como
os do monumento a Franciso Elias), serviços de louça utilitaria, peças
decorativas (pertencentes ao Museu da Secla).
Exigente e absorvente, a miniatura passou
nos anos 80 a ocupar a parte maior da actividade de Herculano Elias, em
paralelo com a formação cerâmica, exercida no Centro de Formação Profissional
para a Indústria Cerãmica das Caldas da Rainha (Cencal). Mas não abafou a
versatlidade de ceramista completo
de Herculano Elias, que continuou, em exposições individuais, a surpreender
pela exploração de novos campos e novas propostas.
A modernidade da cerâmica caldense remonta,
como se sabe, a Rafael Bordalo Pinheiro e ao seu trabalho de recriação
efectuado sobre o “palissy das Caldas” cuja figura cimneira fora
indubitavelmente Manuel Mafra. O seu modelo “laboratorial” fora inspirado pelo
movimento “Arts and Crafts” britânico, o que se reflectiu desde logo na
estrutura projectada para a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, em 1884.
O mesmo modelo veio a ser retomado pela Secla, nos anos 50 do século XX. É um
modelo assente na recusa da inevitabilidade da abdicação da arte em face da
indústria e na valorização do papel da aprendizagem assistida por artistas e
técnicos qualificados.
Em Herculano Elias confluem as genealogias
da modernidade cerâmica caldense assim definidas. A mais antiga recebeu-a em
legado pelos seus familiares. Da mais recente participou pessoalmente, pelo
percurso profissional que desenvolveu na Secla.
Atingida a alta maturidade, Herculano Elias
propôs a si próprio um momento de balanço, com a exposição que levou à Galeria
Municipal em Maio de 1995. A par de miniaturas elaboradas entre 1980 e 1996, o
autor apresentou um conjunto de retratos, em clara assumpção da escultura, em
registos distintos de acabamento e composição. Neste trabalho cerãmico,
efectuado entre 1970 e 1996 Herculano Elias confirmava o nexo profundo entre
miniatura e escultura e demonstrava as suas capacidades neste domínio,
retratando com sobriedade e segurança uma galeria de familiares e amigos.
Completava a mostra um conjunto de peças cerâmicas decorativas produzidas entre
1960 e 1970, em contexto fabril, testemunhando a participação do autor no processo
de renovação da cerâmica de que a Secla foi palco nessa década. Herculano Elias
percorria todas as modalidades técnicas: da terracota ao barro vermelho vidrado, do grés à faiança feldspática e à porcelana; do painel
cerâmico ao retrato, das formas cerâmicas levantadas à roda à miniatura e à
escultura.
É com expectativa que se aguardam as
consequências da reflexão gerada no confronto do artista com as suas criações e
os seus públicos.
João B. Serra
20 de Maio de 1996
Boa tarde. Como saber se uma peça é do Herculano Elias que morreu em 2005 ou se e do seu avô com o mesmo nome?
ResponderEliminarHerculano Elias avô não tem trabalhos de autor. Era proprietário de uma oficina onde produzia louça das Caldas para consumo popular. Não ha confusão possível entre as peças assinadas pelo neto e as marcadas na oficina do avô.
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