À sombra da nação*
Em 1889 celebrava-se o centenário da Revolução Francesa. Uma grandiosa Exposição Universal foi projectada para Maio, em Paris. O Comissariado português, chefiado por Mariano de Carvalho, decidiu em Março, entregar a decoração do Pavilhão, no Quai d'Orsay, a Rafael Bordalo Pinheiro. Esta escolha representava uma derrota parcial das teses do director da secção industrial, o Visconde de Melício, acusado pelos seus adversários de pretender arredar de Paris a representação nacional, quer da agricultura quer das colónias, ou seja no dizer dos seus críticos "justamente o que constitui a importância interna e externa da nossa terra".
Queixar-se-ia o artista da escassez de recursos e sobretudo da estreiteza do tempo. Ao edifício cujo interior lhe coube decorar preferiria uma réplica da Torre de Belém, em vez do imaginário palácio barroco que o arquitecto Hermant desenhara. Mas Rafael gostou do que fez, recebeu felicitações bastantes, e, no final do ano, publicou um suplemento à edição semanal de Pontos nos ii, onde apresenta, com indisfarçado orgulho, uma memória descritiva, acompanhada de fotogravuras, das salas que decorou no Pavilhão português.
Interior do Pavilhão de Portugal na Exposição de Paris 1889 decorado por Rafael Bordalo Pinheiro |
Navegamos pois em pleno mar do nacionalismo, tal como foi glosado pelos intelectuais do último quartel do século XIX. Antes de se tornar, com os republicanos, instrumento do combate pela ilegitimidade da monarquia e peça central do programa político de revolução, o nacionalismo deu expressão ao descontentamento intelectual com a decadência do País e a dependência externa. A ideia de nação como um dado, património recebido e portador de um destino, que cumpria identificar e defender, mobilizou toda uma geração de escritores, artistas, cultores das humanidades. Ocuparam-se eles da definição do grande corpus, dos costumes, à literatura, das instituições à cultura material, da genealogia nacional. E preocuparam-se com a selecção e divulgação dos grandes símbolos unificadores da nação, portadores do seu sentido histórico.
Voltemos uma vez mais a Rafael Bordalo Pinheiro e à sua intervenção no Pavilhão Português da Exposição de 1889. Justificando a aceitação do encargo de decorar as salas dedicadas à agricultura e colónias, observa que o fez consciente de "quantos recursos pitorescos o meu País possui, para se colocar dignamente ao lado dos países que têm um carácter seu e uma vigorosa tradição nacional". A referência ao pitoresco surge amiúde no texto de Pontos nos II. Apesar dos receios dos seus detratores, antecipando que as suas decorações transmitissem "uma ideia selvagem da nossa terra", o resultado mostrou, ao invés, "uma ideia nacional e pitoresca". Com origem no termo italiano "pittoresco" - surgindo pela primeira vez em Portugal, nos anos 1838, no título de uma obra dedicada a Sintra, e ainda na forma "pintoresco" - o pitoresco designa o folclore, o local e regional, as manifestações tradicionais da cultura popular.
A cerâmica pontua, como se depreende das fotogravuras publicadas, as diversas salas entregues à responsabilidade do decorador Rafael Bordalo Pinheiro (que ainda se lamenta de o arquitecto não ter projectado os ornatos exteriores do edifício com "o carácter da loiça"): painéis de azulejos suspensos ou aplicados em balcões, potes contendo amostras ou compondo uma mesa, pratos alusivos a actividades e produtos agrícolas, jarrões ornamentais realçando um panejamento, estabelecendo uma continuidade, anunciando um item, um conjunto de peças decorativas preenchendo um vão de escada ou dando vida a uma sala quase vazia. Trata-se quase sempre de cerâmica produzida na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.
Carregando com louça das Caldas para Paris e distribuindo-a profusamente pela parte do Pavilhão a seu cargo, Bordalo não estava porém a recorrer a um elemento decorativo a que podia aceder facilmente e ou lançar mão de um expediente de pura promoção de um produto da sua própria empresa. Nenhuma destas motivações - mesmo admitindo a sua ocorrência - se sobreporia à convicção de Bordalo de que a louça produzida na fábrica das Caldas correspondia plenamente aos propósitos nacionalistas enunciados para a presença de Portugal na Exposição: a afirmação de que o País "ainda possui prodigiosos elementos dum carácter exclusivamente nacional, podendo competir com o que há noutros países da Europa", mau grado o "muito que as nossas indústrias têm perdido com a horrorosa mania da assimilação constante das indústrias estrangeiras".
Fundada em 1884, a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, com Rafael Bordalo Pinheiro na direcção técnico-artística e seu irmão Feliciano na direcção técnico-financeira, admitira desde o princípio, que as suas finalidades empresariais se não esgotavam em objectivos puramente económicos. Ramalho Ortigão - que reivindicou para si a paternidade do projecto - pretendia que nas Caldas reflorescesse uma forma plástica de "arte portuguesa" e de "expressão popular". Apostava em um novo ciclo das artes decorativas, e achava que só um artista da estirpe de Bordalo lhe poderia dar início. Esse novo ciclo, principiando pela cerâmica, sector julgado apropriado para uma experiência bem sucedida de "indústria de arte", em "concorrência com as indústrias similares do resto da Europa", em breve se poderia estender a outros domínios.
O programa nacionalista deixou marcas em toda a produção da empresa, desde o princípio. Na área dos materiais de construção, onde a normalização se mostra, como é sabido, avessa a particularismos, elaborou Feliciano um modelo original de telha, inspirada na telha portuguesa (por oposição à marselhesa), com vidro (do tipo "verde caldas"). Quanto aos azulejos, as primeiras produções tomam por modelo a azulejaria hispano-mourisca dos séculos XV e XVI, de estilo mudéjar a renascentista, que revestem inúmeros exemplares da arquitectura portuguesa daquela época. Na área da faiança utilitária branca - iniciada mais tarde, por motivos técnicos e financeiros - Bordalo, recusando liminarmente as decorações que reflectissem o gosto chinês, holandês, inglês - corrente não apenas na louça importada como na faiança produzida em Portugal - adoptou no seu mostruário uma gramática decorativa nacional e pitoresca. Podendo o comprador incluir na encomenda uma referência personalizada (um monograma, uma gravura de hotel ou palácio, por exemplo), as peças de louça ostentavam como elementos básicos, aplicados pelo processo da decalcomania, a Torre de Belém, varinas, mariscos, etc.
Mas é na composição das obras que saem da área da louça artística e decorativa que Bordalo terá levado mais longe a inspiração folclórica, que reconheceu e reelaborou. Trata-se da louça das Caldas, cerâmica onde as formas oláricas são enriquecidas com aplicações em relevo, quando não transformadas em processo de fusão com a própria aplicação, frequentemente adaptadas de motivos naturalistas (animais e plantas, alimentos, etc.). Essa tradição, que podemos remontar pelo menos ao século XVIII, recolheu do contacto com produtos similares franceses, designadamente da escola de Palissy, proporcionado pela circulação de alguns ceramistas locais e sobretudo pelo interesse pessoal evidenciado pela família real, de D. Fernando a D. Carlos, um notável aperfeiçoamento técnico e tecnológico. Ao escolher as Caldas para instalação da Fábrica, Bordalo contava com as virtualidades desse meio: uma grande difusão nacional (a até internacional) da louça, que a tornava facilmente reconhecível, um certo favor - em razão precisamente da sua feição exótica - junto das elites.
Tratando-se talvez da mais cosmopolita produção local de cerâmica portuguesa do século XIX, comummente designada, aliás, por "Palissy das Caldas" (vide Inquérito Industrial de 1881), ninguém, contudo, parece ter ousado questionar o seu pitoresco... O nacionalismo - que como toda a gente sabe é a menos nacionalista das ideologias - é useiro e vezeiro em pregar estas "inocentes" partidas...
Tratando-se talvez da mais cosmopolita produção local de cerâmica portuguesa do século XIX, comummente designada, aliás, por "Palissy das Caldas" (vide Inquérito Industrial de 1881), ninguém, contudo, parece ter ousado questionar o seu pitoresco... O nacionalismo - que como toda a gente sabe é a menos nacionalista das ideologias - é useiro e vezeiro em pregar estas "inocentes" partidas...
Em Julho de 1891, no rescaldo de uma crise financeira, que leva a empresa a suspender a laboração, Ramalho Ortigão vem em defesa da produção de louça artística da Fábrica, que não hesita em qualificar, enquanto "documento do génio estético da nossa raça, e depois da poesia de Garrett", como "a obra mais genuína, mais bela, mais comovente e mais expressiva da arte do nosso século", estruturada sobre um "capítulo do folclore português" e um "largo trecho da história popular da nossa terra, das nosssas conquistas e descobrimentos". Na mesma campanha em socorro de Bordalo, Joaquim de Vaconcelos (Fevereiro de 1891) priviligia antes a produção de faiança utilitária, que a Fábrica das Caldas estaria elevando à categoria de "verdadeira louça nacional da família portuguesa, banindo os assuntos chineses, as caricaturas à inglesa, à holandesa e outras, que durante meio século tiranizaram o sentimento, o gosto e os nervos (sic) dos nossos pais e avós, e os nossos próprios".
Apesar da diferença de acentos tónicos dispensados por estes dois críticos de arte à produção da Fábrica de Faianças, concordam ambos na oportunidade de o Estado se envolver na protecção de uma unidade nacionalmente relevante. Porque se trata de uma "indústria de arte" portuguesa bem sucedida, num País carenciado delas, porque valoriza matérias primas e recursos humanos nacionais (não tanto, uma vez mais, como se quis fazer crer, porquanto a empresa importou, como outras, tecnologias, matérias-primas e trabalho especializado do estrangeiro) e porque a sua actividade se reveste do valor estratégico que resulta da inserção num processo de defesa do mercado nacional através da substituição de importações. Quanto a este último aspecto, observe-se porém que o comportamento das variáveis estatísticas derrota por completo as pretensões nacionalistas: em plena crise das finanças públicas e por entre as vozes do coro proteccionista, as classes médias portuguesa continuaram alegremente a comprar serviços de mesa ingleses e alemães...
A temática nacionalista domina, enfim, a louça narrativa, um tipo de cerâmica que vive em função de uma história, de um acontecimento que se pretende comentar, de uma figura que ilustra uma situação. Neste campo, as peças saídas do atelier de Bordalo, não se filiam em tradição barrista, pois estamos perante uma espécie de "cartoonismo" a três dimensões, e, como amplamente demonstrou José-Augusto França, a história do humorismo ilustrado anterior a Bordalo não se levanta da mediocridade.
Este género de cerâmica - não referenciado no Pavilhão do Quay d'Orsay - adquire significado na produção bordaliana sobretudo depois da estadia em Paris e surgindo em associação com o sobressalto patriótico provocado pela "questão inglesa", na express‹o de Oliveira Martins. Na primeira edição de Pontos nos ii de 1890, datada de 2 de Janeiro, Rafael, numa alusão ao novo ano, figura o Zé Povinho empunhando a bandeira portuguesa e pontapeando, sob o Arco do Triunfo, com a Torre Eifel em fundo, um John Bull caído por terra, espavorido perante um gato preto assanhado. De mãos dadas com o Zé, camponesa em atitude revolucionária, a Maria brande uma espada onde se lê "Viva Portugal", em direcção a um Punch que com o seu macaco ao colo foge montado num leão. Ladeiam a página as inscrições "Exposição de Paris" e "Pavilhão do Quai d'Orsay". Em baixo: "Tudo pela Pátria". Oito dias depois, a Inglaterra exigirá que o Governo português ordene a "retirada" de "todas e quaisquer forças militares portuguesas actualmente no Shire e nos países dos Makololos e dos Machonas", por outras palavras, que abandone o projecto de colocar sob o mesmo domínio faixa Angola-Moçambique. A comoção popular que este Ultimatum arrastou percorreu todo o País e agitou, como nunca, as élites intelectuais. Num suplemento de 4 páginas de Pontos nos ii, inteiramente ocupado com o acontecimento, publicado a 16 de Janeiro, a última página é dedicada a Serpa Pinto "heróico explorador que atravessou África no meio de triunfos (...) a verdadeira e única encarnação do espírito nacional, isento de toda e qualquer mácula partidária". Na primeira página e nas centrais Bordalo sublinha o contraste entre a subserviência actual de um D. Carlos e a virilidade futura da Nação. Mais uma vez é o Zé Povinho que Bordalo escolhe como protagonista central da figuração. "Hoje" calcado aos pés da "pirataria" inglesa e da "traição dos Braganças", mas "amanhã" empunhando o látego com que expulsará do País todas as marcas da dominação económica britânica.
A cerâmica recebeu esta indignação e participou do protesto. John Bull foi ridicularizado, como escarrador ou penico. A garra do imperialismo britânico saltou do desenho para a modelação em pasta cerâmica. O abutre inglês lançou-se sobre o peito aberto de Prometeu-Portugal para lhe arrancar as entranhas (as colónias). O Zé Povinho, também ele, deixou o grafismo para contar a sua história de barro.
A transição sacrificou o polimorfismo do Zé Povinho, em favor de uma tipologia imposta pelas limitações da produção industrial e das exigências do gosto dos consumidores. De facto, o Zé Povinho da obra gráfica de Bordalo, actor-comentador das cenas da vida nacional, era peça central de uma teoria do carácter português. Fixado em cerâmica, o Zé Povinho ficou sobretudo tipo popular.
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